domingo, 9 de janeiro de 2011

Surpresa

Erê pensava fugas. Fugia em pensamento. Olhava pros lados, pra ver se "a barra estava limpa", fechava os olhos e fugia. Escapava, ia andando, virava A Esquina e se surpreendia com um mundo novo, o mundo que ela queria conhecer. Mas não conhecia, por isso inventava. Ela queria se sentir amada, queria ser chamada de "melhor amiga" por alguém que não fosse sua vizinha de cinco anos. Estava inconformada. Estava com um nó no peito havia tempo, mas só conseguia traduzir isso em gritos e motins. Até perceber.
Até que a falsa tristeza (falsa por ser fictícia) e o mau humor tomaram conta de Erê; qualquer palavra a lembrava de que lá fora têm mais palavras. Qualquer enfeite de natal a lembrava da neve no longe. Até o disco empoeirado na estante lhe lembrava do tanto de gente em tanto lugar que teria ouvido as mesmas músicas.
Era pra ela já ter esquecido. Ela queria um norte, só isso. Não era compreendida, a julgavam adolescente, louca e desequilibrada.
Quando aconteceu, Erê ficou mais forte. Será que conseguiria? Será? Talvez um pouco mais pra além d'A Esquina? Não sabe... Ela entendeu que não precisava pensar a fuga. Não era necessário fugir. Dava pra ser, ali e naquele momento. E em quaisquer lugares, em quaisquer ensejos. Era só ser. Ser o que queria, e teria um mundo inteiro à sua espera. Não adiantava esperar que ele se incutisse em seus olhos fechados. Se Erê suspendesse o queixo, empinasse o nariz, olhasse bem fundo à sua volta e simplesmente fosse, tudo estaria meio pronto e resolvido. Se ela não fosse, quem seria por ela? Não é? Se ela não se amasse, quem mais a amaria? Se sentiu capaz. Sim, ela conseguia, não tinha porque não. Não havia aquele ditado, "se Maomé não vai à montanha, a montanha vai até Maomé"? Se uma das metades não estava em ação, que ela tomasse as rédeas do que queria e se levasse em frente.
Não precisava de equipamentos sofisticados, não precisava de uma equipe treinada e competente, não precisava de nada nessa empreitada. Só dela mesma. E isso ela tinha de sobra. Depois d'A Esquina tinham outras esquinas, que tornavam aquela comum. Não, igual nunca seria, seria sempre A Esquina, o limite imaginário por tantos anos. Mas seria comum. Daqui a pouco ela teria um catálogo de esquinas em seus olhos, em seus ouvidos.
Talvez o mau humor dominasse Erê de vez em quando. Mas seria um mau humor intensivo, que logo acabava. Pois "quem chorou dia sim, dia não, chorava menos, mas foi chorando até o verão". Ela gostou daquela sensação. Que lhe mostrava que sim, existiam limites, mas sempre é possível encontrar uma chave para suas portas. Alguns limites não tem portas. Estes sim, não podem ser transpostos. Mas a maioria são limites quiméricos. Esses geralmente são impostos por ela mesma. Quem disse que Erê nunca conseguiria terminar de ler todos aqueles livros (que ela sempre começava, mas se entediava e parava)? Quem disse que ela nunca teria coragem de falar com aquele gatinho que morava na rua de trás? Tudo, tudo ela mesma.
Não precisa ser exageradamente e espalhafatosamente. Porque daí extrapola o limite do ridículo. Basta ser, sentir, ver, sem máscara, sem bloqueio, sem falsos credos.
Erê não acreditava que era tão simples.
Achou que tinha algo errado, sentou no sofá, olhou pros lados, fechou os olhos e pensou.
Andou, correu, dançou, ouviu. A música que soava em seus ouvidos, que movia em seu corpo. As esquinas, os faróis. Mas sem fugir. Porque ela já tinha chegado no mundo que tanto procurava.

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