terça-feira, 19 de abril de 2011

Anísio e seus amigos

Era feliz naquele mundo, daquele jeito.
Não precisava de mais nada.
A vida era perfeita,
o sol era perfeito,
a rua sem buracos,
o joelho sem cicatrizes.
Todas as músicas que tocavam no rádio
eram suas preferidas,
todas as meninas que vinham falar com ele
eram as que amava.
Todos os seus amigos eram felizes,
e tudo fora feito em sua homenagem.
Uma dia escreveriam na sua lápide:
"aqui jaz Anísio, o perfeito".

Era o cenário da monotonia perfeita.
O cenário perfeito para a monotonia.
E ai de uma mudança se ela atrevesse
a chegar perto, mesmo que para melhor.

Os livros na biblioteca da cidade eram todos biografias.
Contistas e poetas eram perseguidos,
torturados e convertidos.
Jovens revolucionários
iam parar no calabouço.

As lâmpadas de iluminação pública
jamais queimavam,
e nunca havia engarrafamentos.
A praia estava sempre limpa
e convidativa.
A loja de brinquedos,
sempre cheia de crianças mimadas
e felizes. Os pais, sempre felizes.
O prefeito com nada tinha que se preocupar.
A cidade seguia feliz.
Anísio seguia feliz,
a face estampada no sorriso.

Não ouvia mais,
não via mais,
não falava,
não tocava,
seu nariz já não funcionava.
Não precisava de nada disso,
era perfeito e feliz.
Nas escolas do mundo inteiro,
as crianças aprenderiam seu nome,
como aquele que era feliz
e não precisava de nada.
Mas, por dentro,
Anísio tinha raiva de si mesmo.

Tinha instintos contidos.
A máscara que vestia dia e noite
já não lhe servia direito.
Encontrava as pessoas na rua
e elas lhe davam bom-dia.
"Mas eu não conheço essas pessoas!"
Olá, bom dia!
Se tornou uma verdade completíssima.
Seguia hesitante, aquele Anísio.

Não gostava nada de gente reprimida.
A moral da história era sempre
"liberte-se do que lhe pesa
e a felicidade é garantida".
Mas sempre sobra um restinho ali,
no canto.
Anísio estava pleno de restinhos.
Sua vida não era mais tão perfeita.
Mas só ele via, já que o mundo,
no fundo, não era dele.
Só acreditavam.
O acreditar, para Anísio, era a base.
É assim que se comandam nações,
é assim que se controlam mentes.
Só ele sabia que todos ali eram livres.
Mas estavam tomados pelo desejo
de seguir igual, perfeito,
porque "o perfeito é e era bom
e assim será, para sempre".
Anísio seguia indignado.

Mas ele mesmo era perfeito!
Deveria então ser feliz e bom!
Mas era, não era?
"De quem foi essa idéia estúpida
de plantar tais pensamentos em minha cabeça? "
Anísio seguia desacreditado.

Continuava com suas mesmas músicas preferidas,
com suas mesmas garotas amadas,
com seus amigos felizes,
com o joelho limpo e sem cicatrizes,
com o sol perfeito e sem nuvens.
Mas feliz?
Continuava feliz... Se é que já era feliz?
A cidade seguia feliz, e Anísio seguia raivoso.

Comprou uma passagem para o exterior
e se hospedou num albergue de esquina.
Acordou de manhã sem criados
que arrumassem sua cama,
sem o rádio-relógio
despertando na mesma hora
todos os dias.
Levantou sem um armário
cheio de roupas quentes,
Comeu sem seus amigos
à sua volta,
rodou pelas ruas de paralelepípedos
sozinho e com chuva.
Anísio não seguia, andava.

Mas uma hora sentiu falta
de toda aquela perfeição
do seu mundo monótono,
e voltou.
Abandonou a chance.

Anísio seguia no fundo, no chão, e igual.

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