quinta-feira, 18 de março de 2010

ANGÚSTIA

O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo... Iona anima-se e conta-lhe tudo...

- Sabe, eu era feliz... Feliz com minha mulher e meus dois filhos. Filhos exemplares eles. Imagine, minha eguinha, imagine se teu potrinho cresce e vá viver à frente da carruagem da Rainha... É o mesmo sentimento, esse de orgulho. Até que fui abandonado por minha mulher... Fugiu com um vizinho, imagine... Hi-i, hi-i... Rio para não chorar. Criei só os meus dois filhos. Minha querida, imagine você só com teus potrinhos, sem teu amor por perto. Foi uma faca que me invadiu o peito, como um rasgo em teu coração. É tristeza demais para um só.

“Cresceram felizes, eles. Cuidei dos dois o melhor que pude. Até o dia em que meu Kuzmá chegou em casa com uma chaga em tua perna. Pensei eu, tolo, ser sujeira, chamei-o de preguiçoso. Faz tempo isso. Foi embora o outono, apresentou-se o inverno e ele ficando cada vez mais branco, cada dia mais fraco. Como a neve. Agora vejo que simplesmente não quis ver tudo isso.

“Aníssia enfureceu-se certo dia. Atirou contra mim palavras fortes, que se quebravam contra minha cabeça dura como pratos indo de encontro ao piso de pedra fria. Fria como eu. Como meu coração, também de pedra.

“Meu filho queixou-se para mim, certa noite, de se sentir mal, com dores em cada centímetro de sua tez pálida. Dei-lhe uma surra. Só agora sinto a aflição de meu filho, seu medo... Mandei-o trabalhar no meu lugar, estava morto de cansaço. Fui cruel... Até parecia a cidade. Só queria a eficiência, os copeques no fim das luas. Não me importei com as vidas.

“Ao nascer do sol, Aníssia me levantou, desesperada. Fora acordar o irmão, e este estava pálido como a lua da ponte Politzéiski. Coincidência, hi-i, hi-i... Levei certos rapazes lá esta noite. Mas me recusei a cuidar de meu filho, a levá-lo para o hospital. Estava furioso, dei uma surra também em minha filha, acusando-a de ajudar o irmão em suas mentiras preguiçosas. Tolo. Aníssia o levou para o hospital, voltando três dias depois.

“Recebi a notícia da morte de Kuzmá à noite. Tentei aparentar frieza, não consegui. Estava doendo às surras que dei, embora tardiamente. embora tardiamente. Olhei para o céu, pedindo perdão, vi ali uma estrela. A estrela de meu filho. Que chorava.

“Perguntei à minha filha o que ele tinha lhe dito. Com a voz entrecortada pelo desespero, demorei mais que o normal para verbalizar essa simples pergunta. Aníssia, notando meu sofrimento, foi breve. Queria que meu sofrimento também fosse breve. Só me disse que o que seu irmão mais desejava era que eu tivesse acreditado nele. Ao menos uma vez. E, pela primeira vez, chorei na frente de minha filha.

“Chorei por tê-la culpado. Por ter batido em meu rebento. Por não ter acreditado e não tê-lo levado à sua última cama.

“Silenciei. Não disse mais nada. Fomos o mais cedo possível ao hospital, buscá-lo e buscar seus pertences. Colocamo-lo na carroça e o levamos para o cemitério. A cada trotar seu, minha eguinha, eu sofria mais. Essas palavras, que você está ouvindo, espero, estavam presas em meu coração. Não saíam. Doía mais e mais. Muito.

“Não tínhamos dinheiro. Tivemos de jogar seu corpo em uma vala comum, para ser esquecido. Situação estranha essa, um pai enterrar o próprio filho, hi-i, hi-i... Perguntava-me porque a morte não me pegou primeiro. Ao menos pouparia meu filho das surras. Imagine, eguinha. Você morreria para poupar teu potrinho, não?

“Enfureci-me então. Gritei, prorrompi em lágrimas, rompi meu silêncio. Corri até você, tão leal, e a impeli para a cidade. Abandonei Aníssia. Fui covarde. Não conseguiria mais ver a lembrança, senti-la a cada nascer do sol. Viver no meio dela.

“Então você se lembra do que fizemos, não? Ou melhor, da estultícia inconsciente que cometi... hi-i, hi-i... Gastei o que tínhamos nos bolsos coma bebida, acreditando tolamente que ela me apagaria a memória... Aprendi na prática que não é tão simples assim. Até ontem, não é? Decidi que iria guardar minhas moedas... Tentar voltar, tentar enfrentar o incêndio da vida, com as salamandras.

“Não tendo mais a bebida, tudo começou a voltar à minha cabeça... As surras, as gritarias, a morte. Tentei os passageiros... hi-i, hi-i... Tentei acreditar que eles me ouviriam... além de você, minha eguinha, ninguém me ouve...”

...Me ouve, me ouve, me ouve... Era o eco que reverberava nas paredes do estábulo quando Iona, olhando para as estrelas, se juntou a seu filho. Um eco como um pedido, uma súplica... Me ouve...

“hoje à noite

lua alta

faltei

e ninguém sentiu

minha falta”