quinta-feira, 30 de junho de 2011

Asta-i drept, pe Dumnezeu.

     Ele vinha vindo, assim, de mansinho. Olhava prum lado, pro outro, de longe. Prosseguia alguns passos incertos, seus olhos rastreavam o ambiente e, oh, aqui estava, bom dia! Sentava do lado, falava sobre o tempo, goiabas estragadas, a puta da esquina. Puxava um assunto e, se o outro entrasse na brincadeira, continuava. Sentava como que se levantando. Talvez por isso não fizesse tanta falta. Era ininterruptamente efêmero.
     O tempo, para ele, não era. Já foi, mas não será. Vai por inércia. As lâmpadas do seu quarto queimaram há décadas. Poderiam ser somente alguns dias, mas ela continuava queimada.Seu papo taciturno talvez entediasse. Gastava silêncios como um ofegante: aos montes. Selecionava as melhores palavras e as distribuía a conta-gotas.
    Carregava um peso nas costas e outro na consciência. Cobria os braços de casacos como seu id de muros. Cobria os negros fios de cabelo os olhos igualmente negros, e nos deixava na dúvida quanto à sua veracidade.
     Ganhava inúmeros presentes em pensamento, mas jamais os retribuía. Afinal, eram irreais.
     Não garantia seu futuro, embora próximo e necessário; porém era, por si só, um poço do passado.
     Lento, seguia caminhando, um pé na frente do outro, um passo de cada vez. Ouvia Chico e derramava baboseiras românticas. Dispersava-se em ideias, transbordava dinâmica. Acabou a música e já não é mais o mesmo: laconismo.
     Não era comum, tampouco absurdo. Sabia ler, escrever, falar, respirar e ouvir. Nessa ordem. Não era humano nem desnaturado. Arte-final não era, mas o esboço tinha ficado para trás. Poderia bem estar em extinção. É, talvez estivesse.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Mareio

- Tá frio.
- É, tá frio.
- Não quer ir lá pra dentro?
- Não, aqui tá bom.
Batia forte na cara, a brisa que vinha. O frio ardia e queimava mais ainda as bochechas do pequeno.
Sentado na proa, recebia o cheiro salgado de frente, peitava o cheiro salgado daqueles mares. Com uma coragem nunca vista, desbravava caminhos inexplorados, enfrentava monstros aterradores e acordava com qualquer balanço mais vigoroso. O pequeno gostava daquilo.
Passou a mão pelo lenço na cabeça e suspirou. Lenço não fica bem, pensou a mãe. Iria já trocar por um elástico qualquer, mas parou no meio dos passos.
Um estrondo.
Apenas mais uma panela que caiu, apenas mais uma panela que caiu com o mareio, apenas mais uma.
Mas o Destino gostava de supreender.

Dessa vez, o magrelo cãozinho vira-lata resolvera derrubar a cadeira do comandante.
Que não mais ali estava.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

May be


"Queria acabar de uma vez. É, e não há melhor início para esse bilhete inesperado de semi-despedida: vou, mas volto. Pego um ônibus qualquer, o primeiro trem da madrugada, uma carona na beira da estrada, uma canoa, o que for. Se preciso, irei andando. Mas vou. Meus sapatos estão gastos e minhas unhas roídas. As roupas no varal são pra ficar lá mesmo, no varal, inclusive aquela camisa velha com uma mancha de vinho barato na lapela. E ai de vocês aí se tirarem um cisco do lugar, um cisco do luar. Aquelas velhas gaivotas sinalizarão o atracar do barco, e então cá estarei eu. Quando vocês se derem conta, já terei virado o corredor e será tarde demais. Deixo esse guardanapo podre apenas como forma de não arrependimento e lembrança. No fundo, não quero acabar-me, mas acabar-me-ei, em alguma coisa que não risadas. Tenham certeza disso. 'Té mais'."

sábado, 11 de junho de 2011

understanding


- Ei, garoto, sai daí.
Passou o palhaço, o elefante, fumaça, mil luzes, o coelho na cartola, o dia. O rosto redondo e sorridente do palhaço, redondo, sorridente e cruel, redondo, sorridente, cruel e frio. Aceita uma flor? Tchá, água na cara, rá! Não tem graça, mamãe, vamos embora, não teve graça, seu guarda. Mas as luzes, e as palmas, e o calor abafado, os amendoins massudos, aquele gosto de desassossego, ah, aquelas luzes... Levanta-se e se agarra àquela luz, vai, garoto, suba no palco! Agora é sua vez...
- Garoto, vamos, colabore, eu ganho pouco pra fechar esse lugar, 'cê vai deixar meu filho com fome.
Fome, fome, fome, dinheiro, a noite, nada. O mágico o conduziu por entre as belas dançarinas, passou a mão na juba do leão, pôs o pé no primeiro degrau da longa subida rumo ao trapézio. Vai, garoto, tu consegue! Olha pra trás e encontra uma lágrima, duas mãos unidas, unhas roídas, desespero e um grito, vai! Quer que eu escolha outro garoto?
- Vamos, onde está sua mãe?
Ali, ali torcendo por mim, ela não sabe o que fazer, se descabela, sua mão topa com uma parede invisível e dali pra frente, nada mais é dela, nada mais é previsível, nada mais existe. É seu filho, será meu filho, será, meu filho? Mais um degrau, a platéia vai ao delírio, olha o garoto, meu filho! Olha mãe, quero ser igual a ele! Compre amendoins pra mim também? Não, não pode subir! Desçam daí, vocês dois! A primeira fileira se acalma, os tambores rufam, algumas notas numa espécie de trompete desafinado marcam o terceiro degrau. O garoto olha pra cima e força um sorriso. É alto. De repente a escada se transfigura numa pilha, vira prum lado, pro outro, bambeia. Mas vamos, olha lá, a garota te espera e te ensina a pular, é uma delícia, veja com seus próprios olhos! E já está a poucos instantes dali. É festa, é choro, é riso, é a suposta estabilidade, é o zumbido incessante nos ouvidos e o bêbado tropeçando a cada paralelepípedo.
- Tome um brinquedo, garoto, e saia daí.
"Zonzo de ver tambor bater pra quem é daqui, zonzo de ver tambor bater pra quem é de lá, zonzo de ver tanta menina rodopiar, lembrou de que não era pra se lembrar e zonzeou". Berra, esperneia, chora, faz birra, quer voltar, só tem sete anos, só tenho sete anos, inquieta-se, mas está quase, não tem volta. Dá a mão para a bela garota de maillot no fim da linha. Ela lhe apresenta uma barra, duas cordas e uma rede, lá embaixo, pra eventualidade de ele soltar e cair. Segura a barra, as mãos tremulam, as luzes tremulam e mais tambores rufam, quase trompetes desafinam e mães choram. Uma réstia de luz vem do furo na lona e aponta para o chão.
- Garoto, acorda!
A corda e o pulo, o chão é longe, a febre é alta, o nariz escorre muco, sangue e vida. Estanca o grito e os pulmões saem do ar, os braços jazem moles ao longo do corpo e já não suportam seu peso. Mas ele precisa.
- Pare, garoto, pare com isso!
O sorriso da moça se distancia, a música para, o negro come o canto do olho, o guarda é o leão, o leão é o palhaço, o mágico é o elefante e o elefante já não chora. A sebe rasteja e o sapo fica estático. Uma última luz, ei, quer uma flor?
- Vamos, garoto, acabou o espetáculo.