domingo, 19 de maio de 2019

Amar-nos-emos

Quero um amar sem finalidade. Um amar intenso e sem relógio.
Um amar de olhar as estrelas numa noite fria ao som de uma cidade, e se sentir abraçado pelo vento.
Quero amores sem prazos, sem precisões. Acolhidas não perecíveis. E, quando nascesse o sol, uma metamorfose em um dueto: descansando em fermata, até quando quiser durar, em ressonância.
Quero abrir os olhos e ver cores, não grades. Abraçar um amor de percurso, por onde estradas levarem, enquanto levarem. Quero ouvir tua voz pelo que me diz, e ensurdecer para o medo de não ouvi-la.
Quando vejo o fim da noite bater nas janelas alheias, portas entreabertas, meus passos são cadenciados - as solas dos pés ainda caminham nos teus trilhos. Quero um amar de maquinista: retorna às mesmas estações, vê crescer as flores nas dormentes, não se prende a uma só encruzilhada. Quero um amor em ré menor, mas também quero um amar atonal, dodecafônico, dissonante. Amar se acostumando ao trítono.
Quero amar meu próprio enlace, amando um rodopio no teu. Que meu precórdio não arda pela ausência do primeiro.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Por que não farei psiquiatria

Não acredito no receptor de serotonina. Não porque não o vi: tive experiência própria o suficiente para conviver com ele, mas até onde ele existe no universo farmacológico, já não sei.
Não acredito na “psiquiatria burra”. Aumenta a dose do remédio, insiste de novo na psicoterapia, sei que é difícil, há fila, há resistência, mas tente! Tentar em vão, um sistema falho, um ambulatório corrido, uma escuta despreparada. 
Não acredito no “afeto normotônico, normomodulante, normorressoante”. “Normo” como? Estatístico? Arbitrário? Pressupõe-se uma “normalidade” em quem conduz a entrevista - uma percepção sem nuvens. Se desnudar de tudo o que carrega. Julgar o outro com uma dureza que não dirigiríamos a nós mesmos (ou, se dirigirmos, acabamos na cadeira de paciente).
Não acredito na loucura. Acredito em sofrimento. O “louco clássico”, o esquizofrênico, mostra que a loucura existe pela comparação - um rótulo que colocamos no contraste dele com o mundo.
Não acredito nas boas intenções de quem diz evitar uma nova Barbacena. Palavras sedutoras, abraços nos pacientes, mas “a mão que afaga é a mesma que apedreja”. Se pudesse, colocavam haldol e sertralina na água potável.
“Inibidores da recaptação” - em uma lógica cartesiana, há até algum sentido. Mas talvez apenas um acaso sortudo, e sequer tão sortudo. Eles não resolvem um orientador de doutorado abusivo. Não resolvem um filho, uma mãe, um avô, mortos. Não resolvem uma história inteira de vida. Não resolvem a favela. Não resolvem o racismo, a homofobia.
Psiquiatras: será que pouco mais que “Mister M”’s do sofrimento? Ilusionismo disfarçado de farmacologia?
Ao se encontrar no fundo do poço, vendo ao longe uma escada infinita a subir, é preciso uma mão de ajuda, sem dúvida. Há sofrimento, e não somos todos Pelé, Didi, Tostão - driblando todo o campo, o time adversário com pernas de 3 metros e mira infalível. Porque o tal time somos nós mesmos. Não há mais amedrontador do que uma batalha contra si mesmo.
É preciso um guia. O mapa, porém, tem áreas em branco, rabiscos, proporção falha, uma rosa-dos-ventos com 5 direções. A bússola implode, ao tentar encontrar uma direção. E a escada permanece longe, o poço permanece fundo, mas agora temos uma venda em nossos olhos, sedados. 

sábado, 15 de setembro de 2018

Lâmpadas de emergência sem bateria

Os primeiros e segundos violinos cederam no terceiro compasso. Os violoncelos, ostinatos, sucumbiram ao quinto sistema. Na segunda marcação de ensaio, tampouco os trombones e fagotes permaneciam. O maestro também quebrantava-se. 
Ela deixara de ouvir para onde ia a música. Levantou-se e, a passos magnéticos, tenta caminhar orquestra afora. 
Cada levantar de calcanhares lhe parece sua maior escalada, sem enxergar quantos degraus por vir. Sobre suas espáduas, três toneladas e meia: o sono não dormido, o abraço não dado, a aula não vista. Corre e estende a mão nas nuvens - encontra um mi bemol, levemente desafinado. 
Dispneia ou desalento ao repouso? Força grau 2 para o despertar? A que lesão corporal corresponde o não-cuidado? Seria acaso um vírus, um bacilo gram negativo, um acidente ofídico? 
Apoia os pés no que lhe soa o chão. Mas há muitos compassos não há chão, apenas um acalanto em tom menor: sereno, pero no mucho. Um tempo morto - "um grito pronto pra saltar das paredes da garganta". 
Seu olhar já se esfumaçava, enquanto mil laços amarelos tremulavam no escuro.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Violino

Te conheci pessoalmente pela primeira vez aos 8 anos.
Ainda estávamos desconfortáveis e desajeitados, se desententendo a nosso modo. Mas não tinha jeito: o vínculo já havia nascido.
Te reencontrei alguns anos depois, desta vez pra valer. Você havia crescido, eu também, e aos poucos nossas conversas e abraços foram tomando forma. Me mudei, você se mudou junto comigo. Se antes nos víamos por obrigação (por mais que com vontade), agora nosso convívio era diário.
Eu cresci mais um pouco, e você também. Agora dávamos as mãos entrelaçadas, fortes - apesar das pedras no caminho, continuávamos juntos.
Mas eis que chegam mais primaveras, e com elas outros conflitos. Não conseguia mais te ver da mesma forma, e cada passo era mais custoso. Achei que não valia a pena, achei que estava perdendo meu tempo e muitos outros aproveitariam (e estavam aproveitando) melhor esta oportunidade. Achei que nunca conseguiríamos entrar no acordo calmo e mútuo do início.
Te deixei de lado. Não me orgulho. Todos os dias te olhava ao longe, sem coragem de me reaproximar. Te ouvia nas ruas e inevitavelmente a saudade me preenchia, mas o ânimo não vinha junto. Frustração, medo, tristeza, decepção. Cada vez mais nos afastávamos no que imaginava ser uma rodovia sem retorno.
Algumas vezes ensaiei uma abordagem. Te cortejava mas desistia antes de ouvir uma resposta - no fundo, estava apavorada do que poderia escutar. Foram alguns anos de vai-e-vem, te ouvindo cada vez menos.
E então, sorrateiramente, nos aproximamos de novo. Te abracei mais uma vez, por pouco tempo e seu som emprestado de outro, mas ainda assim: o entrelace se mantinha. A primeira estrada que percorremos juntos, desta vez, foram quatro oitavas. Sol maior. Não fomos sozinhos, depois de tanto tempo não conseguiríamos; mas a ajuda foi bem vinda e serena.
Decidimos manter as mãos dadas; com menos afobação e expectativas, mas o laço ainda ali. Fui relutante. Às vezes a rotina nos atrapalhava, e o progresso foi como o caracol na parede: um passo pra frente, três para trás.
Mas não desistiremos. Não dessa vez.

sábado, 15 de outubro de 2016

Dor epigástrica difusa, taquipneia e miose


O virar de cada sol anda muito perguntas e pouco respostas. Levantar é saber de mais uma manhã sem entender como existe essa multiplicidade de eus, sem saber calar um, ouvir outro. Há raiva, há briga. De onde vem tanta raiva?

Levantar é não saber se estarei ou não, se o andar é meu ou piloto automático. Se o tempo corre sozinho ou comigo. Verei, de olhos abertos, o próximo pôr do sol?

A razão da saudade às vezes não faz sentido. Seria a ausência de essência meus eyes wide shut ou uma essencial - hipertensa - ausência?

Minhas pupilas se contraem de frio e luz, em formato de ?

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

liberta

Não sei quando o amanhã virá, se virá. 
Mas ouço teu canto no meu, levo teu remo no meu, e cada canto cada remo cada tosse cada voz se une em linha e agulha, e remenda-se um rasgo que permanecera aberto.
O vento deixou de atirar agulhas contra meu dorso. O sol queima em cada foco auscultatório em hemitórax esquerdo. 
Também o sol brilha, longe. A lua ainda se esconde.
Não há paz; tampouco há guerra. 
Há sol. 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

um dia

A vontade de tudo fugiu.
Sabe lá pra onde,
como, quando.
Não me peça uma manchete jornalística;
não me peça nada.

Nada tenho a te oferecer.
Quem sabe um café,
um dia no sofá, uma preguiça,
um cafuné.
Mas é só.
O resto a onda levou,
e o areal, comigo, aguarda Yemanjá
trazer de volta o tudo renovado.

Menina,
um dia tu encontras teu rumo,
e neste dia conversamos.
Um dia.
Pode não ser um dia de sol.
Pode ser um furacão de rumos
en
  cru
zi
  lha
da


luz

Miríade de noites mal dormidas, as últimas luas não têm permitido tempo.
As mesmas luas torturam e afagam. Drenam nossa força, preenchem-nos de adagas, uma espécie menos biológica de dispneia-dor-ventilatório-dependente constante; e nos abraçam, cobrem-nos de flores e restauram o calor de nossos pés na neve.

Não me bastam as luas. O sol é preciso.

domingo, 21 de junho de 2015

andar

as mesmas mãos
iconoclastas
competem em reconstruir,
colecionando cacos, 
os mesmos arquétipos
que conjuntamente quebraram.

as mesmas vozes
revolucionárias
removem o realizado
e rugem, em harmonia
pelo retorno de tudo
que um dia derrubaram.

os mesmos olhos
esperançosos
cansaram da caçada,
do que há de se transformar.
e hoje apenas se cegam
frente à (falta de) luz que os venda. 

não se canse,
sim,
não se canse. 

a trilha ainda é árdua, 
e havemos de cair, cair, e cair
e talvez perder a voz, as mãos, os olhos.
levaremos surras e arrancarão nosso couro.
talvez não nos sobre nada.

mas andaremos. 

sem dúvida,
andaremos. 

sábado, 3 de maio de 2014

!

Três folhas!
Três folhas, singelas, pousaram na cabeleira longa e ruiva. Com pernas finas, a cabeleira corria sob a "komorebi", a luz do sol que as folhas filtravam.
Um riso a cada tropeço. Duas mãos que, unidas, lentamente se afastavam.

Dois dedos!
Dois dedos, que mal se encostavam, era só o que os unia. Cada vez menos risos, cada vez mais tropeços. Era agora ofegante por correr, e a cabeleira seguia com suas três folhas.
Lembrava, mas a luz do sol ofuscava sua memória.

Um!
Um, só. "O olhar procura, antecipa a dor no coração - vermelho". A brisa do outono não tinha mais luz.
Aki ga tatsu. (começou a soprar a brisa do outono.)