segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Dia de Chuva - Parte 4 (final)

Marina rodava, rodava, num mundo que não era o seu. Lua dançava ao seu lado, ambas olhos vazios. Estrela ia mais ao longe, subia, subia, sabia onde ir e quem orientar. Lua sabia o que mudar. E Marina... Deveria voltar, já devia ter voltado, mas aquele sentimento de segurança e alívio seria abandonado. Isso ela não desejava. Sua irmã ficara, deveria voltar e mover o necessário para protegê-la. Ela não sabia. Se soubesse, a encontraria... Seria melhor... Mas não, tirar uma vida era um peso grande demais para sua consciência. Já era um privilégio grande demais ter se encontrado com Lua. Embora isso não fosse propriamente um privilégio, mas todavia...

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- Bom mesmo, assim ela aprende a se comportar. Pelo menos não vai nos dar trabalho. - Disse um terno verde-oliva.
- Temos ainda a irmã dela, companheiro.
- Mas essa está tão assustada que não se atreverá. - Outro à mesa também se colocou, calmamente.
O grupo ali reunido se preocupava com coisas muito maiores do que dois corpos caídos no chão. Precisava continuar. Tinha que.

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Cecília agonizava no chão. A respiração cada vez mais difícil. Gibrail ao lado, mas este já havia deixado de sentir há tempos. Porque embora não percebesse, o objetivo de sua espera por tantos anos estava ao seu lado, mas as forças já tinham se esvaído de sua mente. Não havia mais memórias. Só manchas do que um dia foi. E do que nunca voltará a ser, pois ali permaneceria até findar.

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O almirante se desesperava no convés. Não havia vento, não havia lua ou estrelas. Apenas breu. "Parece de propósito", pensou. O barco, cada vez mais agitado pelas ondas, seguia com certa dificuldade. Mas seguia para o nada, não sabia. Decerto iria a pique. Se não fosse o Mar acalmar, uma Estrela surgir ao longe e a Lua brilhar acima das cabeças dos tripulantes, agora tranquilos. A vida tinha que continuar.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Surpresa

Erê pensava fugas. Fugia em pensamento. Olhava pros lados, pra ver se "a barra estava limpa", fechava os olhos e fugia. Escapava, ia andando, virava A Esquina e se surpreendia com um mundo novo, o mundo que ela queria conhecer. Mas não conhecia, por isso inventava. Ela queria se sentir amada, queria ser chamada de "melhor amiga" por alguém que não fosse sua vizinha de cinco anos. Estava inconformada. Estava com um nó no peito havia tempo, mas só conseguia traduzir isso em gritos e motins. Até perceber.
Até que a falsa tristeza (falsa por ser fictícia) e o mau humor tomaram conta de Erê; qualquer palavra a lembrava de que lá fora têm mais palavras. Qualquer enfeite de natal a lembrava da neve no longe. Até o disco empoeirado na estante lhe lembrava do tanto de gente em tanto lugar que teria ouvido as mesmas músicas.
Era pra ela já ter esquecido. Ela queria um norte, só isso. Não era compreendida, a julgavam adolescente, louca e desequilibrada.
Quando aconteceu, Erê ficou mais forte. Será que conseguiria? Será? Talvez um pouco mais pra além d'A Esquina? Não sabe... Ela entendeu que não precisava pensar a fuga. Não era necessário fugir. Dava pra ser, ali e naquele momento. E em quaisquer lugares, em quaisquer ensejos. Era só ser. Ser o que queria, e teria um mundo inteiro à sua espera. Não adiantava esperar que ele se incutisse em seus olhos fechados. Se Erê suspendesse o queixo, empinasse o nariz, olhasse bem fundo à sua volta e simplesmente fosse, tudo estaria meio pronto e resolvido. Se ela não fosse, quem seria por ela? Não é? Se ela não se amasse, quem mais a amaria? Se sentiu capaz. Sim, ela conseguia, não tinha porque não. Não havia aquele ditado, "se Maomé não vai à montanha, a montanha vai até Maomé"? Se uma das metades não estava em ação, que ela tomasse as rédeas do que queria e se levasse em frente.
Não precisava de equipamentos sofisticados, não precisava de uma equipe treinada e competente, não precisava de nada nessa empreitada. Só dela mesma. E isso ela tinha de sobra. Depois d'A Esquina tinham outras esquinas, que tornavam aquela comum. Não, igual nunca seria, seria sempre A Esquina, o limite imaginário por tantos anos. Mas seria comum. Daqui a pouco ela teria um catálogo de esquinas em seus olhos, em seus ouvidos.
Talvez o mau humor dominasse Erê de vez em quando. Mas seria um mau humor intensivo, que logo acabava. Pois "quem chorou dia sim, dia não, chorava menos, mas foi chorando até o verão". Ela gostou daquela sensação. Que lhe mostrava que sim, existiam limites, mas sempre é possível encontrar uma chave para suas portas. Alguns limites não tem portas. Estes sim, não podem ser transpostos. Mas a maioria são limites quiméricos. Esses geralmente são impostos por ela mesma. Quem disse que Erê nunca conseguiria terminar de ler todos aqueles livros (que ela sempre começava, mas se entediava e parava)? Quem disse que ela nunca teria coragem de falar com aquele gatinho que morava na rua de trás? Tudo, tudo ela mesma.
Não precisa ser exageradamente e espalhafatosamente. Porque daí extrapola o limite do ridículo. Basta ser, sentir, ver, sem máscara, sem bloqueio, sem falsos credos.
Erê não acreditava que era tão simples.
Achou que tinha algo errado, sentou no sofá, olhou pros lados, fechou os olhos e pensou.
Andou, correu, dançou, ouviu. A música que soava em seus ouvidos, que movia em seu corpo. As esquinas, os faróis. Mas sem fugir. Porque ela já tinha chegado no mundo que tanto procurava.