sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Dia de chuva - parte 3

- Me diz. Agora. AGORA!
Gritava Marina. Sentia Marina. Respirava Marina. Olhava. Não ouvia, não deixava, não entendia. E não recebia resposta.
-Eu a perdi! Vocês a perderam!
Não adiantava. Nada movia o coração de pedra daqueles homens.
-Perdi meu pai, minha filha e minha mãe. Perdi! Por causa de sua ambição! Essa ambição estúpida e desesperada!
Silêncio.
-Marina, poderíamos...
Estrela tentava ajudar, mas a teimosia da tia ainda reinava absoluta.
Ela tinha uma idéia. Mas sabia que iria colocar em risco mais vidas. Não quaisquer vidas, mas ESSAS vidas. As vidas.
-Talvez, se seu avô arrogante não atrapalhasse nossa jornada, nada disso teria acontecido. - Essas palavras, as primeiras não saídas do âmago de Marina, foram dirigidas à garotinha. Estrela não os conhecia, mas sabia o que escondiam.
Marina não.
E pulou para trás com o que disseram sobre seu pai. Lágrimas corriam. O que era esporádico se tornou corriqueiro. E o que sempre fora certo se tornou dúvida.
-Está na hora de saber que "coisa errada" foi essa que teu pai fez, para merecer perder a memória. - Disse outro homem à mesa. Todos sentados. Ternos verde-oliva. Olhos de breu.
"Éramos um grupo. Unido, forte, ambicioso. Tínhamos tudo para seguir em frente. Tínhamos todos algo especial. Seu pai não era diferente. Gibrail acumulava memória. Tudo. Sua mente era invejável. E tudo apontava para que seus descendentes também desenvolvessem algo parecido. Mas não desejávamos isso. Não queremos aberturas."
"Mas ele se envolveu com uma certa memória. Uma memória incerta. E não se esqueceu dela. Até que a encontrou novamente. E assim você e sua irmã vieram ao mundo. E herdaram o mar. E nos abriu."
"E tínhamos um pacto, não? Não veria mais a luz do sol quem fizesse isso. Seu pai ofereceu sua filha em troca da vida. E nós oferecemos um menor preço: sua memória."

"Sunlight, trough the trees in the summer
Endless masquerading
Lika a flower as the dawn is breaking
The memory is fading."

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Eles

E ele descobriu que estava feliz com tudo aquilo. Aquilo. Mas não sabia o que era. Não sabia como era, porque era nem de onde era. A falta, a saudade. A chance de estar feliz. Ele sentia que. Ela sentia a. Eles notaram. Eles estavam.

Porque se a aproveitassem, talvez a ida não fosse necessária. Talvez o longe ficasse mais perto. Talvez a volta. Talvez eles. Talvez a cidade. Aquela mesmice já o cansa. E o último olhar talvez não fosse tímido, talvez não fosse assim. Intermediado. Talvez não fosse arriscado. Talvez não fosse. Mas quem sabe?

Ela descobriu que estava feliz.

Recorrente medo do receio em si. ♪

Adamantine seguia pelas vielas fracamente iluminadas. Olhava ao redor. A todo tempo. Não parava. Seguia andando, passos curtos e rápidos. Não ia para um lugar específico. Ia.

Ela sabia que sempre seria assim. Sempre os passos furtivos. Sempre o olhar desconfiado. Sempre o mesmo vinho no mesmo bar, sempre no fim. Sempre próximo do fim. Sempre a fuga. Mas nunca se deixaria levar, domar. Por aquilo, ah, aquilo.

Virou uma esquina, virou outra e mais outra em seguida. As quadras iam diminuindo gradativamente, à medida que se acostumava com os buracos no chão. Quando enjoava, mudava a rota. Já fazia alguns meses que andava por ali.

Entrou no já conhecido bar, pediu o já conhecido vinho, pagou com o já conhecido dinheiro. E surpreendeu-se com o desconhecido que o recebeu.

Derrubou o copo. Ele se espatifou de encontro ao piso frio. Derrubou a bolsa, e o pouco dinheiro que ainda levava consigo se espalhou pelo chão sujo do bar. Suas pernas se recusavam a correr. Seus olhos se recusavam a se mover. Seu corpo se recusava a se virar. Sua voz se recusava a sair.

Tudo era inesperado. Possível, mas improvável. Na mente de Adamantine, impossível. Porque não estava previsto. Não estava dentro da rotina. Não estava ali. Não existia. Não, era pensamento. Era apenas isso, ilusão. Ela não queria acreditar. Não queria enxergar. Não queria ouvir, não queria sentir, não queria tentar.

Não queria resistir.

E ali, de frente ao desconhecido, sentiu medo. Mas também felicidade. E se entregou.

E rios de lágrimas surgiram, sob o céu estrelado.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Dia de chuva - Parte 2

A filha de Cecília olhava pela janela. Olhava sua vida passar na sua frente, como um filme. Estava de braços cruzados há cerca de uma hora, na janela do hospital.

- Senhorita Marina? O neonatologista gostaria de falar contigo.

E ela foi. Só para ouvir o que já (não) sabia. “Aparentemente, foi um sufocamento com o próprio muco, senhorita. Sua mãe deve ter ouvido a tosse e foi tentar ajudar, mas chegou tarde demais e se assustou de tal forma que não agüentou a dor.” Marina já tinha ouvido o mesmo diagnóstico de três médicos diferentes.

Não, Lua não poderia ter morrido assim, sem mais nem menos. Tinha algo maior. Tinha que haver. Sua mãe tinha o sono ainda mais pesado do que ela. Como acordaria com a tosse da garota, se dormia no andar de baixo? Como que ela mesma não teria ouvido, sendo que acordou com um ruído leve de um esbarrão?

-Senhorita?

“Não, não era possível. Ele não faria...”

-Senhorita, está tudo bem?

“A não ser que... Mas já faz muito tempo... Ela nem se lembraria mais.”

- Marina, acorda!

Era a voz de sua sobrinha. Estava esperando do lado de fora, mas ao ouvir um baque surdo entrara. Seu nome era Estrela. Tinha apenas cinco anos, mas não sabia o que lhe esperava. Já conseguia encontrar seu brinquedo predileto sem titubear. Dali alguns anos, seria a melhor aluna de geografia. E trabalharia como detetive. Mas não sabia de nada disso.

Marina se preocupava. Estrela era muito nova para saber de tudo o que estava acontecendo, mas ela poderia ser de grande ajuda. Preocupava-se com própria segurança. Seu pai se arriscou demais ao trazer sua irmã e ela ao mundo, arriscou muito mais do que a própria memória.

Quarenta minutos depois, uma garota de cinco anos, seguida por uma mulher de trinta e um grupo de jovens policiais estaria seguindo para o aeroporto.

“Do mar
Vem estrela confiante
Traz no ventre a sorte grande
O primeiro de um milhar

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

.ahcif a uiac

Queria o avesso. Quero o passado. Queria guerra, quero paz. Queria o desafio, o mistério, o desconhecido. Quero apenas a certeza, o já sabido, mastigado e remoído. Queria a corrida. Quero o descanso. Queria mais gente. Quero o vazio. Meus copos estavam cheios. Não tenho mais copos. Escrevi pensamentos. Escrevo ações. Pensei absurdos, penso o lugar-comum. Estive quase. Ficou difícil. Fiz planos. Faço listas. Sonhei. Caiu a ficha. Gostei. Amei. Não mais. Senti perto. Sinto longe.

"Estar perto não é físico."

"Algo explodiu no infinito."

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Alternativas

No meio da noite, ali estava ele. Sentado, os olhos fixos, uma mão no mouse, outra no teclado. Não se movia. Ou melhor, movia seu dedos. A caneca de café, sempre à mão. Já estava vazia há dias, talvez semanas. As formigas já tinham se saciado do açúcar. As moscas foram procurar outro fedor para cercar. Só restava ele ali, de frente para a tela. A face já não se movia para rir, ou mesmo chorar. Os recados na secretária eletrônica já se acumulavam. Sua mãe já estava preocupada, tentava falar com o filho, mas nada. Coitada, não usava twitter, facebook, orkut... Usava email, mas você acha que seu filho abria? Já era coisa de antiquário. Seu violão jazia empoeirado no canto da sala. Provavelmente seus ouvidos já não mais apreciariam uma boa música, uma nota afinada, um cravo bem temperado. O arroz na panela já tinha mofado, a geladeira estava vazia. Seu estômago também, mas que diferença fazia? Agora se alimentava de luz. E ainda assim se alimentava mal, pois a luz era artificial. Todas as suas lâmpadas já tinham queimado, mas sua conta de luz seria alta, como sempre. Estava magro, faltava-lhe energia para tudo. Seus livros? Comidos por traças. Até que um temporal desaba. E a cidade fica sem luz. Como viveria agora?

Dia de chuva - parte 1

Era de noite, o quarto era escuro, e ela já não enxergava muito bem. Não queria fazer barulho. Foi entrando, sorrateiramente, e esbarrou no criado-mudo. A bebê não acordou, "ainda bem", pensou Cecília. Carregava um lenço encharcado numa mão, uma almofada na outra e lágrimas nos olhos. Se guiava pela lua, pelas sombras que esta provocava. Lua, este era o nome da bebê. Abaixou-se, para não bater a cabeça no móbile de estrelinhas, e com esse movimento sentiu um estalo na coluna. Definitivamente Cecília não tinha mais vinte anos: tinha que se cuidar. Começara a morrer. A filha dormia tranquilamente no quarto ao lado, dormia as poucas horas de sono a que ela tinha direito. Faltava apenas um metro até o berço. "Anda, Cecília, tá quase". Mais dois passos. A Lua brilhava. Mais um passo. Ela estende o braço com o lenço, falta pouco. Mais um. A bebê já começa a se revirar. Mais outro, e a mão de Cecília encosta no nariz da garotinha. Um grito abafado. Silêncio. As lágrimas da mulher caíam torrencialmente sobre o rosto da neta. O outro braço já chegava, por cima. A mãe percebe um movimento, mas não se preocupa. "Deve ser Cecília". E era mesmo. A almofada baixa sobre o rosto delicado, adormecido. Mais lágrimas, desespero. Pressiona. Sem ar, sem ar, sem ar! Pára. O coração de Cecília não mais bate.

Lua já não mais respira.

E a lua brilhava no céu.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

patinetes, férias, outono.

lá estava eu
de frente pra parede
sem dizer um ai
ou coisa que o valha
sonhei que estava ali
de frente pra janela
olhando, à minha volta,
a sobra de comida
na panela de pressão
peguei um livro, li
refleti, matutei, guardei
pensei que isso me cansa
isso de pensar
isso de guardar
de rimar
é total desnecessário.
postei uma carta
no correio lá do centro
depois pensei: pra quê?
já que tem um correio bem ali,
na esquina?
dá pra ir de patinete!
até mesmo o passarinho
do outro lado do mundo
me ouviu.
resolveu me responder
dizendo a todo mundo
que eu era louca, pirada.
falava com as paredes, janelas,
pratos, panelas e copos
ou mesmo cabelos.
eu não fazia sentido pra ele,
era só mais uma desocupada
sem nada pra fazer
ou pensar, ou nadar, ou correr...
passarinho, tire férias!
vá brincar de pega-pega,
esconde-esconde ou
amarelinha.
senão cansa!
ser chato o tempo todo
cansa!
hoje não é primavera,
mas as flores estão bem bonitas.
estão florescendo.
passarinho, vá brincar com as flores!
hoje é outono, mas não nos interessa.
as folhas verdes da primavera
são mais bonitas e cheirosas
do que as folhas ressecadas, vermelhas,
amarelas, laranjas e pelo chão
de outono.
eu sei que preciso aprender,
falo com as paredes,
sou apaixonada por cadarços,
olhares, bermudas e sons,
gosto de pular, pular e pular,
e fico feliz só de enxergar alguém.
mas, passarinho! olhe pra você!
tentei falar contigo, mas acho que errei.
fui pelo jeito errado de falar.
devia ter esperado, esquecido,
espairecido.
mas o estresse é grande, ninguém aguenta!
olhe lá, o mar.
lá é quente, há comida e outros passarinhos
e passarinhas. vá lá,
passarinho! viva sua vida
enquanto é tempo!
ninguém tem o direito de tirá-la de ti!
nem mesmo eu!

cadê?

pra lá, pra cá, esquerda, direita, em frente, siga, retorno, curva, olha a placa!, semáforo, espera, ansiedade, acelero. viro. de novo, e mais outra a outra vez. onde? ali, não, ali, aqui, um pouco mais pra cá! será? não, errei! saco! volta, anda, repete o percurso, esquece de novo, não vira! perde, recupera, perde novamente, acerta! corre, espera, olha, estaciona, atravessa, buzina! calma, respira. continua, vira, entra, pergunta, acabou!


"mas eu sei que alguém vai te encontrar."

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cálice

Acho que me falta tolerância. Acho que me falta crítica. Me falta esperança, me falta tristeza, me falta alegria. Me falta coragem. Me falta confiança. Me falta desconfiança. Me falta burrice, me falta saber. Me faltam cadeiras, mesas, salas de jantar. Me faltam discussões. Me falta calma. Me falta água com açúcar. Me falta raiva. Me falta ódio, me falta amor. Me faltam livros, me faltam filmes, me faltam músicas e rádios. Me faltam ossos. Me faltam olhos, ouvidos, bocas. Me faltam cheiros. Me falta interesse. Me falta busca, me falta um destino. Me faltam aventuras. Me faltam florestas, árvores, rios. Me faltam lágrimas. Me faltam copos. Me faltam rostos. Me faltam risos. Me faltam Saras, Helenas, Polettos. Me faltam escadas. Me faltam poemas. Me faltam palhetas, violões. Me faltam Costas. Me faltam semanas. Me faltam aulas. Me faltam professores. Me falta rigidez. Me falta dormir, acordar, dormir, acordar. Me faltam bolinhos. Me faltam atrasos, me faltam faltas. Me faltam telefones, ligações. Me faltam Ricardos. Me faltam baixos, pianos, guitarras, baterias. Me falta arrependimento. Me faltam papéis e lápis. Me faltam cadernos. Me faltam cartas. Me faltam metades. Me faltam facas e queijos. Me faltam mãos. Me faltam teclados. Me faltam letras, me faltam palavras. Me falta ouvir. Me falta enxergar. Me faltam cinemas. Me faltam pipocas e refrigerantes. Me faltam horas, relógios. Me falta tempo. Me faltam impressoras. Me falta luz, me falta energia. Me faltam cabos. me faltam guindastes, tratores, empilhadeiras. Me faltam construções. Me falta um pedaço de ti. Me falta o nada. Me falta tudo.

E me sobra o resto.