terça-feira, 31 de maio de 2011

Vai, não

- Preste atenção, garoto. Não vê o lado frágil desta tábua? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, meus pés hão de ser firmes e meu corpo, equilibrado. Ao lado só há o nada; porque temer o nada, se não sabemos o que nele há? Temer o desconhecido é ter medo da luz do sol. E do lado da tábua.
- Tome tento, garoto. Não vê teus cadarços desamarrados? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, meus cadarços são meros fios de corda, não têm força para me puxar ao solo. Caso enrosquem nos meus dedos e, por um momento, minha cabeça penda ao chão, logo meus braços me levantarão da queda.
- Cuidado, garoto. Não vê que há um vão nesta ponte? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, pois só se não tivesse olhos. No caso de não o tê-los, peço ajuda e oh, lá vem a ajuda. E me tira do sufoco do não-ar-haver.
- Bote os miolos no lugar, garoto, não vê que onde está nem ao menos é ponte, é barco? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, e sendo barco, que me leve para longe. Sendo barco, que me equilibre nas águas rasas e nas águas fundas, nas calmas e nas revoltas, e que aporte num cais seguro. Ou noutro barco. Sendo barco, que não fique, acompanhe.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Tennessee

O celular emitiu um bipe. Mais uma daquelas mensagens de propaganda, "envie GOL para 48600 e receba notícias da copa". A copa já passou. A rodovia vazia chama o sol no horizonte, uma saída pra uma estradinha que poderia ser de terra. Sem poeira, sem buracos, paralelepípedos acompanhando. Quase em branco e preto, aquela poderia ser uma paisagem de quase 1960, os Fuscas tinindo e um ambiente certo. Correto, estável. Vira, esquerda, direita, a casinha pitoresca no fim da estrada já se destaca, atrás o meio abandonado. Olha onde ele veio se meter. Quando recebeu a ligação, coisa de uma hora atrás, esperava estar chegando agora em um prédio qualquer no centro.
Apavora-se com o entorno da casa. Poderia estar MESMO em 1960. Reduz a velocidade, faz a curva e deixa o carro engatado. Sai cauteloso, sobe os três ou quatro degraus e toca a campainha. Uma senhora abre a porta e revela uma cena típica de uma família inglesa, o chá das cinco. Diz a que veio, não mora nenhum Peter aqui. Mil desculpas, devo ter me confundido. Vira as costas e tropeça, desorientado, até que a verdade o atinge pelas costas.
Volta e a abraça.

terça-feira, 3 de maio de 2011

fanteano

Vou subindo a escada, não, Abelardo, você não gasta com essas coisas, não pode, "vem cá, quer ver como se divertir essa noite?", quanto custa, vale um sapato e um saco de laranjas na venda do japonês, a escada acaba, um corredor, não, ainda dá pra voltar atrás, mas você não quer, Abelardo, ah, bem que você queria aproveitar, dois dólares e mais nada, são tudo, o dinheiro da mãe, mas sempre há dinheiro e sempre se pode pedir mais, o japonês pode dar um desconto na próxima, a avó pode mandar mais dinheiro, sempre, aquele meu pai cafajeste bem que podia aparecer, ou um qualquer, verei meu nome na capa das revistas e jornais e todos falarão de mim, ganharei dinheiro, sim dinheiro pra gastar com essas coisa, oh, não, a porta, "entre, se acomode", um quarto comum de motel, o clique da chave atrás de mim, não, Abelardo, arrombe a porta e saia correndo, volte para a sã consciência, seja corajoso, deito na cama, ela sobre mim e tua boca encosta meu pescoço, minha mão sobre teu cabelo e pensamentos, volte, Abelardo, sua mãe, Abelardo, imagine ela quando souber, você está em maus lençóis, me atiro para o outro lado da cama e me sento, me levanto como alguém que se levante em grande estilo e se lembra de um compromisso, afinal minha agenda é cheia e não há tempo para tolices como essa de entrar num quarto qualquer com uma mulher qualquer, ela nem ao menos é loira, Abelardo, o que você faz aqui, saia agora, mas continuo quase deitado, dois dólares e uma cabeça, "dois dólares", pois tome quatro, tenho pressa, visto o casaco e o frio da escada me espera junto com o vazio, a bronca e o machado.