quarta-feira, 27 de abril de 2011

Precaução

A música soa o vazio de seus olhos, o olhar soa no vazio de sua música. Não quer que retome do silêncio, jamais. Eterniza um momento de muitos, fecha as janelas para o frio lá fora. E espera, do fundo de seu sentimento, que isso baste.

Mas não há cobertores, e neva.

"Conspiração..."

Abriu o e-mail num gesto mecânico.

"O que eu sinto, foi o que perguntastes...Pois creio que essa resposta ainda não foi encontrada, nunca foi e nem será. Se apenas nós sentimos o que queima essas nossas entranhas, como podem os outros procurá-la? Sobra a gente.
E a gente muda, ora sente, ora não. Quando sente, nos arrebata de forma tão intensa que ficamos mudos, surdos e cegos do que virá, do mundo. Agora, nosso mundo está ali, à nossa frente e o resto não existe.
Esse é meu mundo, volta e meia. Os outros são meros figurantes. Nesse mundo, o mero tropeço (em todos os seus sentidos intrínsecos) nos mata. Do quê? Vergonha, medo, raiva, lembrança, tudo ou nada disso. Nese mundo, há a possibilidade.
E qualquer que seja a sombra de uma tesoura vindo cortar esse fio de não-tempo, meus olhos se tornam vermelhos e minhas mãos querem agir sozinhas. E se esse mundo é unilateral, mesmo um olhar provoca a barbárie, um mero encostar de costas leva à depressão.
E faz parecer de propósito. E piora, e piora mais.
Quando essa sombra se afasta ou nem chega a cobrir a luz do sol, parece.
Aí tu me pergunta:  mas parece o quê?
E eu te respondo: a felicidade."

Cegou, emudeceu, ensurdeceu.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Lado

O vento forte balançava as cortinas em pulsos, como uma mulher gorda num balanço. Vai, vem, volta. A música soava alta e initerruptamente, da caixa de som. O telefone apitava de dez em dez segundos, denunciando recados na secretária eletrônica.
O sofá, torto na parede, abrigava um corpo.
Sigo mais um pouco, uma porta à esquerda leva à cozinha, em frente um corredor, a lâmpada no lustre vistoso, queimada. O cheiro quente de bolor e o acre de cachimbos meio fumados. Aquela fresta de luz no chão, e a poeira voante.
A estante ao meu lado embolora enquanto não há alguém para cuidá-la.
Estendo a mão na frente de meu nariz e a ponta de minhas unhas encosta a madeira podre. Rangido e luz. O vidro quebrado da janela deixava passar os pássaros. Aos montes. Os lençóis rotos e sujos jaziam amarfanhados sobre o colchão, fundo. Nada além. Ao lado, um baú semi-aberto guardava um bilhete e pó.
"Não me espere pro jantar" - era o que dizia. Indiferente.
Nenhuma faca, nenhuma corda, nenhuma gota de sangue manchava o assoalho. À direita, um banheiro, privada quebrada e suja do vômito. O espelho lotado de adesivos. A lâmpada pendia sozinha no teto, vidro no chão.
Dou meia volta e a cozinha me espera. A porta do armário, tímida, entreaberta. As formigas saciaram-se do açúcar, e não havia mais. Nem um, nem outro. Um resto de livro abandonado na mesa, manchado de café com leite e saudade. A xícara, posta sucintamente sobre o pires.
Volto à sala e o piano está aberto, como sempre. O banco quebrado não sustenta mais o peso de seu pianista, e de nenhum outro. O corpo abandonado já não me amedronta, me desperta curiosidade. Esse corpo levanta, os olhos brancos tontos, e me esfaqueia pelas costas.

a gente

A gente vai sentar ali, junto. Pegaremos o papel e a caneta e criaremos um mundo só nosso.
E nesse mundo amor não faltará, para nenhum de seus viventes. Nesse mundo, as garotinha de sete anos não desejarão uma Barbie princesa, elas irão atrás daquela sensação boa que sobre pelo pescoço de vez em sempre. Nesse mundo, as estrelas nos contarão sua história em forma de poesia, e nos ninarão com sua doce música.
Nesse mundo, nossos olhos estarão jamais distarão, nossos braços nos envolverão mútua e reciprocamente, e nossas mentes não terão nada além com que se preocupar. Nesse mundo, a fome não importa, a sede não importa, o dinheiro não importa. Nada disso existe no nosso mundo. Ele já é pleno.
Nesse mudo, a vida tem graça. O sorriso da velhinha comprando tomates na feira contagia todo um continente. A felicidade não é eterna e permanente, mas se renova.
No nosso mundo o tempo passa, mas dura.
No nosso mundo moramos em um coração. De favor.
Ali, a gente senta junto. Pegamos o papel e a caneta e recriamos um mundo já nosso. Porque a única força capaz de criar é o amor.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Dezoitoras perto do meio-dia

Você pega três chocolates na geladeira e senta em frente ao computador. Ninguém para falar contigo, nenhuma idéia vindo à sua mente crua. Você então levanta e sai andando pela casa, imaginando o que poderia acontecer, o que poderia ter acontecido e o que aconteceu. Se decepciona com o resultado e abre a janela da sala. Senta novamente, lê a mensagem que recebeu, continua cabisbaixo. Levanta as sobrancelhas e crispa os lábios, o olho direito arregalado e o outro dormindo. Coloca o celular em cima da folha de papel à sua frente, que insiste em voar para longe. O vento atravessa a janela e empurra seu cabelo para os olhos. Você levanta a mão para ajeitá-lo e não resiste em passá-la suavemente pela lateral do rosto, imaginando o extinto.  Se sente idiota e pensa em seu eu estúpido. Você escreve, e não é isso o almejado. Facas fatiam seu estômago e adentram seu âmago. O livro sobre a estante continua lá, e nao será por milagre que ele lhe dará uma idéia. É de dia, e as luzes não estão acesas, mas o sol brilha no poente. O céu alaranjado não te lembra nada, sua consciência se esvaiu. Uma respiração mais profunda e o pulso acelerado, de repente, te lembram do amanhã. Você espera uma ligação, mas não sabe quando ela virá. Até lá, devemos encontrar uma distração, algo que acomode. A música que você ouve lhe traz um cheiro familiar de longe. Você procura a perfeição, mas alcança um pouco além do plágio. Você quer acelerar o tempo, comandar as chuvas e os corações, e o melhor que criou até hoje ninguém viu. Você é o meio-termo, o equilíbrio, e não sabe.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Olhares metonímicos

"Oi, sou eu de novo. Você ainda não respondeu.
Tudo bem. As coisas andam corridas, né? Não há tempo nem para acender as luzes. O tempo domina você, mas você não domina o tempo.
Tem ouvido muita música? O rádio estava ligado. Estava tocando aquela música que eu te contei mês passado, 'Tribal Gathering', The Byrds. É bem boa, devia procurar.
A luz da sua rua queimou. Não se preocupe, já tomei as providências. Mas que estava escuro, estava.
Aquela velhinha que mora na rua da frente continua tocando saxofone. Dá pra ouvir daqui.
Hoje, quando tu me viu, não pude responder direito. Estava no meio de algo importante, não me lembro bem o quê. Pode ser que tenha sido uma ligação, ou uma futura. Mas ganhei um presente em pensamento, e você nem percebeu que o deu, ou foi de propósito?
Um presente em pensamento é aquela sensação boa que nos enche de confiança e ar. Muito ar. Empinamos o nariz, esticamos a coluna e seguimos por aí, felizes. É a esperança de um tempo não perdido, é outra palavra fedida jogada no lixo. Um presente em pensamento não se vê, não se mostra, não se empresta. Não vale nada, e vale mais que todo o dinheiro do mundo. Um presente em pensamento não é comprável.

Um presente em pensamento se dá sem consciência, e se retribui com um presente em sentimento.

Um presente em sentimento não se pode retribuir. Se dá outro. E então se troca, se mistura e vira um só. Exponencialmente maior.

Você fatiou esse sentimento em dois, espremeu até a última gota de sumo, acrescentou uma pitada de olhar, colocou numa jarra e esqueceu em cima da mesa.

A despensa estava vazia, e a louça, suja.
Não tinha mais guardanapo."

terça-feira, 19 de abril de 2011

Anísio e seus amigos

Era feliz naquele mundo, daquele jeito.
Não precisava de mais nada.
A vida era perfeita,
o sol era perfeito,
a rua sem buracos,
o joelho sem cicatrizes.
Todas as músicas que tocavam no rádio
eram suas preferidas,
todas as meninas que vinham falar com ele
eram as que amava.
Todos os seus amigos eram felizes,
e tudo fora feito em sua homenagem.
Uma dia escreveriam na sua lápide:
"aqui jaz Anísio, o perfeito".

Era o cenário da monotonia perfeita.
O cenário perfeito para a monotonia.
E ai de uma mudança se ela atrevesse
a chegar perto, mesmo que para melhor.

Os livros na biblioteca da cidade eram todos biografias.
Contistas e poetas eram perseguidos,
torturados e convertidos.
Jovens revolucionários
iam parar no calabouço.

As lâmpadas de iluminação pública
jamais queimavam,
e nunca havia engarrafamentos.
A praia estava sempre limpa
e convidativa.
A loja de brinquedos,
sempre cheia de crianças mimadas
e felizes. Os pais, sempre felizes.
O prefeito com nada tinha que se preocupar.
A cidade seguia feliz.
Anísio seguia feliz,
a face estampada no sorriso.

Não ouvia mais,
não via mais,
não falava,
não tocava,
seu nariz já não funcionava.
Não precisava de nada disso,
era perfeito e feliz.
Nas escolas do mundo inteiro,
as crianças aprenderiam seu nome,
como aquele que era feliz
e não precisava de nada.
Mas, por dentro,
Anísio tinha raiva de si mesmo.

Tinha instintos contidos.
A máscara que vestia dia e noite
já não lhe servia direito.
Encontrava as pessoas na rua
e elas lhe davam bom-dia.
"Mas eu não conheço essas pessoas!"
Olá, bom dia!
Se tornou uma verdade completíssima.
Seguia hesitante, aquele Anísio.

Não gostava nada de gente reprimida.
A moral da história era sempre
"liberte-se do que lhe pesa
e a felicidade é garantida".
Mas sempre sobra um restinho ali,
no canto.
Anísio estava pleno de restinhos.
Sua vida não era mais tão perfeita.
Mas só ele via, já que o mundo,
no fundo, não era dele.
Só acreditavam.
O acreditar, para Anísio, era a base.
É assim que se comandam nações,
é assim que se controlam mentes.
Só ele sabia que todos ali eram livres.
Mas estavam tomados pelo desejo
de seguir igual, perfeito,
porque "o perfeito é e era bom
e assim será, para sempre".
Anísio seguia indignado.

Mas ele mesmo era perfeito!
Deveria então ser feliz e bom!
Mas era, não era?
"De quem foi essa idéia estúpida
de plantar tais pensamentos em minha cabeça? "
Anísio seguia desacreditado.

Continuava com suas mesmas músicas preferidas,
com suas mesmas garotas amadas,
com seus amigos felizes,
com o joelho limpo e sem cicatrizes,
com o sol perfeito e sem nuvens.
Mas feliz?
Continuava feliz... Se é que já era feliz?
A cidade seguia feliz, e Anísio seguia raivoso.

Comprou uma passagem para o exterior
e se hospedou num albergue de esquina.
Acordou de manhã sem criados
que arrumassem sua cama,
sem o rádio-relógio
despertando na mesma hora
todos os dias.
Levantou sem um armário
cheio de roupas quentes,
Comeu sem seus amigos
à sua volta,
rodou pelas ruas de paralelepípedos
sozinho e com chuva.
Anísio não seguia, andava.

Mas uma hora sentiu falta
de toda aquela perfeição
do seu mundo monótono,
e voltou.
Abandonou a chance.

Anísio seguia no fundo, no chão, e igual.

Acabou no papel de pão.

"Não gostaria de deixar esse bilhete, assim tão rápido. O guardanapo até que é grande. Se acabar, a gente pega outro, depois o papel de pão, depois o folheto que veio na pizza, depois uns post-its largados do lado do telefone.
Acho que lhe devo umas explicações. Não quero me alongar, preciso ir embora. Já é tarde, e nada de você aparecer. Aquele miojo já deve ter esfriado faz tempo quando você chegar. Talvez a vela já tenha derretido inteira, ou a energia já tenha voltado. Joguei a chave pela janela, olha lá no tapete.
Não sei porque te liguei àquela hora da noite. Não era importante. Talvez, na hora, fosse. Mas me impedi de lembrar. As ruas estavam escuras, não se ouvia um pio sequer, uma buzina ou um carro derrapando ao longe. Uma bicicleta jogada num canto da calçada, a lua espremida no canto de um prédio, e um tênis jogado nos fios elétricos. Talvez  eu estivesse com medo.
Também não sei porque fui atrás de você no dia seguinte, com aquele bafo característico de quem passou a noite sem uma escova de dentes. Assustei-te? Pois, que eu me lembre, você fingiu que não me ouvia, não via, não olhava. Asco, talvez. Os olhos fundos, depois da noite em claro, o nariz quase adunco como sempre, os lábios inchados de uma gripe promissora. Talvez você também estivesse lá, naquela rua.
Quando a gente quer, a memória funciona como uma borracha dela mesma.
A pinga na esquina demorou mais que todo o tempo do meu mundo, e você ainda não voltou. Não posso dizer que estou sentindo saudades. Elas surgem ou antes, ou depois. Nunca na hora. É como o cansaço do cortador de cana. Na hora, só o que lhe vem na cabeça é 'mais um pé, mais um'. Chega em casa, e morre na cama. Dia seguinte, levanta-se sem um copo de café para mais um dia de briga. Amanhã, talvez.
Não posso lhe pedir para me esperar na frente de casa, porque eu não vou aparecer. Não posso lhe pedir para me ligar, não vou nem olhar as ligações perdidas. Porquê? Acho que vou tentar a indiferença.
Mas posso lhe garantir que, daqui uma ou duas semanas, eu vou estar lá de novo. Voltarei, e você não estará em casa. Seu miojo estará pronto, e nem trabalho eu terei. Deixarei outro bilhete como este, e quem sabe você responda."

A SOGRA

Peguei um VHS aleatório na estante, tirei o pó da fita e coloquei no aparelho.
Do meu lado, uma xícara de chocolate quente. Do outro, o controle. Faltava rebobinar. Processo lento. Finalmente chega no começo, e aperto o “play”.
Era Natal, e Natal pra mim sempre foi sinônimo de discussão. A família toda reunida, casa de uma das tias, lareira acesa. Desnecessariamente. Aquelas conversas vazias, sempre sobre as mesmas coisas. O ambiente já é propício.
A câmera girava pela sala, e viam-se duas criancinhas correndo à toda pela sala. Minha mãe e suas irmãs sentadas no mesmo sofá, meu tio tocando a mesma música no violão, a Bachianinha do Paulinho Nogueira. Minha avó estressada com a nova empregada, meu avô quase dormindo na cadeira de balanço.
A música termina e o silêncio perdura. Basta uma faísca para a explosão eminente. E eis que essa faísca surge, dessa vez na forma daquela brincadeira tradicionalíssima desde que me tenho por gente: o “amigo oculto”. O relógio da câmera mostra vinte minutos para a meia-noite. O estresse e a ansiedade se alastram, tal qual bocejo. Fim: faltam cinco minutos. Todo mundo se levantando, os mais velhos enganando o sono e os mais novos estirados no tapete ou no sofá. Bate o sino, ouvem-se fogos de artifício e o típico sorriso amarelo e forçado toma conta da expressão facial de todos.
Feliz Natal pra lá, feliz Natal pra cá, a câmera é deixada na mesinha de centro. Só o que se vê é um pote de amendoim. “Vê se melhora de emprego esse ano”. Fim da bateria.
Aperto o “stop” e rebobino a fita. O chocolate quente acabou há tempos. Paro para ouvir. Ao longe, escuto um resto de briga, que também acabou. É tarde, e tem louça suja na pia. Não gosto de louça suja do Natal. Ninguém gosta: gordura demais. Todo mundo come e compra demais no Natal. É presente pra todo lado; mas antes, a maioria invade as multidões dentro de shoppings e gasta, em um dia, o que ganhou durante um ano. É muito rápido. Depois, é diferente. Não gosto de rebobinar os VHS’s. Principalmente as filmagens de Natal. São longas demais. E quando acaba, sempre sobra.
Tem gente que não gosta da sogra. É indesejável.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Carta de pensamento

Caro Carlos,
Acho que de tanto que a gente procura, a gente cansa. Procura trabalho, procura dinheiro, procura amor, procura idéia. Pra quê, no fim? Se achou emprego, pronto, resolveu. Daqui um tempo, cá estamos nós, de novo, a mesma lenga lenga.  Se achou dinheiro, gasta. Acaba, e lá vai procurar de novo. Se acha amor, está enganado: o amor não é encontrável, ele escolhe quando e para onde vai. Tem vida própria. Como bem disse o gênio da lâmpada, posso conceder-lhe três desejos, mas no amor não posso interferir. Se encontra a idéia? Ou coloca no papel, como uma representação reduzida e submissa daquilo que não é representável, ou então puf, escapou. Passa pelos nossos olhos, entra por um ouvido e sai pelo outro. Vai, acende tua lâmpada, e vê se ela se mantém. Precisa de energia, e depois queima. A idéia é simples. Mas não é fácil. 
Aí vem você e me diz que o que procura não é nada disso. Você procura a poesia, você "contempla as palavras". Pois você pode me dizer que a encontrou? A poesia, Carlos, é como o amor: vem, mas não se deixa achar. Como você mesmo diz. Se encontrar a poesia, ela não é tua. A poesia não existe por si só, não é um ser uno e determinado. A poesia constrói sentido com aquele que identifica. Ou que se identifica. É variante. E mesmo para um único, a poesia tem suas faces: cada palavra é um pedaço de tua lembrança, de tua visão, e cada pedaço vem de um lugar diferente. Tem outro sentido. O sentido original? Se perde, e só existe com o autor. Mas, autor, não seja arrogante! A poesia é tua, mas pode ser emprestada. Ela viaja. Mas a poesia não está perdida. 
A poesia está lá. Dormindo, acordando, dia a dia, quando quer vai atrás de ti. Ela é eterna. "Diante dela, a vida é um sol estático". 
A poesia não gosta de ninguém. Ela não ama. É uma relação unilateral, Carlos, isso se tu amas a poesia. A grande esperança da vida do poeta é que ela resolva retribuir. Mas a poesia tem memória, sim. ela lembra das tuas traições, dos teus cigarros inexistentes. Ela não gosta de você, Carlos.
A poesia pode ser o efêmero. Pode ser a destruição, a morte, a própria vida e até mesmo o latido do cachorro do vizinho dois minutos atrás. A poesia eterniza, mas também acaba. Ela pode só não interessar para você, ou para o mendigo pedindo esmola no sinal, ou para aquela garota revoltada que só quer saber de rock. A poesia pode se manifestar rápida, fútil. Pode estar no gesto mais vulgar. A poesia pode se mostrar onde quiser. Ela pode, perfeitamente, estar misturada à raça. O bruto pode não ser poesia, mas a poesia pode conter o bruto. Quando ela quiser, claro. 
A poesia tem sentimentos, também, Carlos. Leve-os em conta. Ela não gosta de revolteios. Ela gosta é de mudança. Não é estática. O mundo onde ela está pode ser. Mas logo ela muda. A poesia não é de fofocas. Não a interessa se fulaninho ama fulaninha, mas esta não o ama. A poesia pode estar no amor. Mas não gosta de dizê-lo. É inefável.
A poesia é a mais pura e fina lâmina de ouro. Valiosa. Mas se rompe com menos de um tiro. A poesia é eterna, mas não é para sempre. Ela se dissipa em águas turvas. Dilui. Queima teu sentido, e se torna poeira de poesia.
Mas quem sou eu para falar de poesia, não é, Carlos? 

domingo, 17 de abril de 2011

Remoído

Saiu da aula inspirado - queria porque queria escrever alguma coisa. Chegou em casa, esqueceu de fechar a porta, sentou na mesa. Abriu o caderno. E ficou ali, parado, olhando fixamente a folha em branco. Esperando que, como por mágica, ele visse uma luz, sentisse um cheiro, ouvisse uma música ao longe ou lembrasse de algo que o motivasse. Sabia o como. Não tinha o sobre. E nada daquilo chegar. Esperou mais um pouco, insistiu. A campainha trazia o aviso da porta aberta. Oh, obrigada, mil desculpas. Alguns passos até a cozinha, caneca, leite. Puro? Não, com chocolate. Sentou de novo, dessa vez com a caneta já aberta, a postos, na mão. E nada. O ponteiro do relógio já estava cansado. Olhava com pena e súplica para o garoto sentado: por favor, não me faça esperar mais! Mas nada. Foi até o dicionário, abriu numa página qualquer, querendo encontrar o que precisava. Chegou ao verbo "selecionar". Não era muito expansível. Se deu uma segunda chance: "pedra". Pedra selecionada, selecionar pedras, hum, não. Ainda não. Uma metáfora distante se formava, mas tão lugar-comum! Abriu de novo o dicionário. Dessa vez uma esperança: "jangada". Selecionar jangadas, Jangadas selecionadas, Pedra da jangada, Jangada de pedra. Mas não, isso já existe, maldito Saramago! Desistiu do dicionário e foi novamente até a cozinha. Olhou pela janela e pensou em ligar para ela. Não, seu idiota, você nem ao menos tem o telefone. Mesmo se tivesse, a coragem morreria antes da dúvida. "Alô? É... eu queria... perguntar..." BIP. Desliga. Resolveu, então, escrever sobre qualquer coisa. Tentou sobre a caneca vazia, não deu certo. "Ali, parada, vazia. Usada" não era um bom começo. Adjetivos demais. Tentou sobre a janela da cozinha, mas esqueceu a frase que lhe veio à cabeça. Pensou em poesia: não precisa de rimas, quanto menos, melhor: vai parecer contemporâneo. É, isso mesmo: poesia. Mas ele achava que precisava de profundidade. Perdeu. Ligou o computador e abriu o facebook, queria esfriar a cabeça. Lembrou de adicionar aquela garota nova na classe, de curtir a banda que descobriu no dia anterior. Abriu o twitter, orkut, msn... Nem lembrava mais do que estava procurando. Abriu uma nova aba, entrou no dicionário online procurando a "palavra do dia". Nada. Mais uma daquelas palavras técnicas demais, restritas demais. Desligou o computador, sentou na mesa. Tirou da cabeça a prova do dia seguinte e se concentrou. Tentou, na verdade. Colocou os dedos em torno da caneta, a caneta sobre o papel, desenhou um A. Continuou: "A dir...". Direção era o que queria, em todas as suas formas intrínsecas. O vento entrava pela janela, levantou-se e fechou. Escurecia, acendeu as luzes. Colocou uma música pra tocar. Tocou uma música, pediu uma pizza. Sentou na mesa de novo. "A direção das grandes coisas/ou mesmo das grandes besteiras/Deixa...". A caneta corria pelo papel como que formiga ou cachorro atrás de carro. Quando se deu por satisfeito, toca o interfone: a pizza. Separou os vinte e dois reais mais a gorjeta e chamou o elevador. Esqueceu os sapatos, corre que o elevador chegou! Subiu com a pizza, comeu, guardou o resto pro café da manhã. Sentou de novo, dessa vez pra reler. Não estava gostando nada daquilo, tomou forma sem consciência, lhe deu medo. Procurou o celular, guardado na mochila. Chega a mãe, depois o pai. O trabalho foi cansativo, como sempre. Como todos os dias de trabalho estressante. Boa noite, filho. Boa noite, pai. Tem prova amanhã? Não. Tá bom então. Boa noite. Tirou o caderno de seu esconderijo e o abriu, furtivamente. Aquilo era seu ouro, o supra sumo de seu cérebro. Guardou em um lugar especial na prateleira e dormiu, esgotado. O dia entrou pela janela aberta.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Não

Nego que estou, nego que não estou. Cada hora é um, cada hora é diferente, cada hora tem lágrimas. Ou não. Às vezes tem consolo de brinde, mesmo inconsciente. Às vezes não. Geralmente talvez. Agora vejo um rosto, viro a esquina e oh!, lá está outro, mais dois passos e me lembro de mais um. Ou mais outro. Falta um pouco de paz, falta um pouco de raiva, falta um pouco de decisão, um pouco de cara de pau. Falta um pouco de tudo. O pouco que me resta tem penas e asas, e voa. Antes de sair, deixa um bilhete de angústia. O cavalinho não tem mais quem cuide dele, então deita no chão e espera. E passa fome. Não faz com que vire do avesso, faz com que mude. Não necessariamente. Acendeu a vela derradeira: a cera, quando pinga, deixa rastros inefáveis. E acaba, último. Pega o fósforo e o queima, até o final. Sente prazer com o esgotamento. Com o fim. Com o não. O mundo saindo, o pescoço virando de torcicolo fingido. A lembrança do falso adeus, do tchau inexistente. E do telefone, ou não. Das unhas e da mão, vaga e verde. Ainda não é hora de colher. O dia entra pela fresta na blusa, o vento entra pela fresta no olho e a música sai pelos ouvidos. O rasgo na porta deixa a dobradiça escapar. E nada de correr atrás. Apenas a suposição já aterroriza, internaliza e arterializa. Desce pra dentro. Porque não vivo no éter, bebo da poeira prolixa de estrelas. E enquanto procrastino o momento da breve exatidão, julgo o sim.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Qualquer

Oi eu sou você não eu sou ela e ele juntos terão terei uma vida duas feliz e você não sabe que sou pois bem sou isso aquilo isto todas essas coisas e confusões inclusive gramaticais e de expressão não ouço não vejo não falo mas cheiro e sinto gostos e tatos também tenho dois olhos a não ser que você tenha mais ou menos não tem problema uso os pés para andar os dedos para segurar essa caneta nada disso é tinta olho pra cima e vejo os outros alteridade e autoridade ali tem um bosque uma praça vamos passear consigo te contar mais sobre mim ele sou eu ela também e você está incluído nessa não imagine apenas absorva toda essa sopa sente-se na grama e olhe as formigas andando ao seu redor elas são leves nós gigantes ali tem buracos mais além montanhas dá pra brincar de escorrega você se lembra de algum escorregador vermelho aqueles de muito tempo de criança sabe eram ótimos agora só made in china e olhe la está escurecendo ainda não falei sobre meu mim eu sou o desconhecido para você não me interessa há quanto tempo já falei contigo antes tenho certeza geralmente tenho uns dejavus acredito em energias ali uma você outra e quando chega é impactante e percebo olhe a lua as estrelas não está chovendo e as nuvens não existem é só uma transparência ali está marte ou vênus não sei o sol o sol já foi embora há tempos vai voltar só amanhã gosto do sol e da lua opostos num segmento e o céu é o conjunto que engloba ambos os pontos as estrelas são a mediatriz colo sim as provas principalmente na biblioteca não sei mais é irritante cada hora um tic-tac relógio na parede o tempo é bonito faça homenagens a ele ele merece é relativo tem tudo mais um pouco e o resto o renegado é esquecido deixado de lado está no lixo não tenho relógio esqueci esqueço as coisas geralmente não faz diferença o que é um apontador ou uma idéia não cuido de plantas nem bichos eles morreriam perdi a aula ontem esqueci o livro em casa não gosto daquele professor mesmo não gosto desgosto gosto é discutível não depende qualquer um sabe que depende tudo depende não sou assim não quero ser assim nem nada e você?

À TONA

Nas manhãs de inverno,
De verão, primavera ou outono,
Nas tardes de sol ou chuva
E nas noites solitárias,
Acompanhadas ou dorminhocas,
Nas praças da Itália que nunca fui,
Embaixo das torres que quero ver,
E dentro dos prédios em que não moro,
No meio de livros que não li,
Nos ouvidos atentos que não ouviram,
Nas novas histórias sem serem abertas
E olhadas,
Nos narizes sentindo o odor fétido
Dos bueiros
E o floral de um perfume francês,
Nas mãos que seguraram crianças,
Que fizeram partos e cometeram crimes
Nos pés de quem não anda mais,
Nas solas empoeiradas de um sapato não usado,
Nas aranhas podres dentro das palmilhas
E na sapateira enferrujada,
Nas estantes cheias de uma biblioteca
E nas bibliotecas sem estantes,
Nas salas de estar com seus sofás recheados,
Nas agulhas e controles perdidos nas suas entranhas,
Na TV ligada no jogo de futebol
E na novela,
No carpete sujo e nas pantufas limpas,
Nas sapatilhas de uma bailarina frustrada,
No chão sujo onde ela caiu,
Na raiva contente e alegria instável,
Nos quadros em galerias e nos pintores malquistos,
Nas folhas e fichas perdidas no piso molhado,
Nas árvores espalhadas, esparsas no bosque
E no bosque vazio,
No piquenique bucólico
E na maçã com seis mordidas,
Na cesta básica do operário
E no champanhe de ano-novo,
Nas festas escuras e piscantes,
Nas cervejas à toa com os amigos,
Nos cigarros fumados pela metade,
Nos pulos do gato e da cerca,
Nas lâmpadas de emergência sem bateria
E nos ventiladores desligados,
Nos elevadores parados
E nas velhinhas atravessando a rua,
Na mulher desamparada
E no homem, falso confiante,
Nas gotas cálidas de desespero,
Nos rostos pálidos de frio e fome,
No frio,
E na fome,
Na sacola de compras que se rasga
E na ajuda do vizinho,
No despertados quebrado
E na bronca do dia seguinte,
Nas horas perdidas e minutos gastos,
Nos ursos polares comendo pinguins,
Nos lenços de papel jogados fora
E no papel-toalha com álcool,
Na caneta que falha
E no lápis que dobra,
No estojo mal cuidado,
Nas penas dos patos e passarinhos
Nos travesseiros,
Na barra da saia das moças
E na luta em liberdade,
Nos muros pichados e velhos
E na ponte caindo aos pedaços,
Nos carros vermelhos roubados,
Nos ladrões que alimentam filhos,
Na lâmpada de sódio queimada,
No termômetro sem mercúrio,
Na doença crônica e sem cura
Ou somente na doença,
Ou na cura,
No remédio milagroso segundo a propaganda,
Na música não tocada,
Na voz rouca incapaz de sair,
No captador desparafusado daquela guitarra velha
E nas cordas percutidas do piano de cauda,
No sono que vem chegando,
Nos imãs de geladeira,
Nos sucos de maçã
E laranja, sempre no fim,
No adesivo colado na janela do quarto,
Na cortina pendurada na janela da sala,
Nas grades colocadas nas janelas,
Nas portas,
Nas colas nas provas
E nas provas em si,
No fone de ouvido cortado ao meio
E no som interrompido,
No sinal rasgado
E no pote mal lavado,
Debaixo das cobertas que não me aquecem,
Dentro das meias que não aquecem,
Dos consolos que não aquecem,
No frenesi que não aquieta,
Nas piadas iguais há um mês,
Nos cadernos sem nada ou sem tudo,
Nos poemas perdidos nas estrelas
E nas estrelas sumidas,
No brilho apagado
E no olhar de relance,
Procuro-te.