terça-feira, 19 de abril de 2011

Acabou no papel de pão.

"Não gostaria de deixar esse bilhete, assim tão rápido. O guardanapo até que é grande. Se acabar, a gente pega outro, depois o papel de pão, depois o folheto que veio na pizza, depois uns post-its largados do lado do telefone.
Acho que lhe devo umas explicações. Não quero me alongar, preciso ir embora. Já é tarde, e nada de você aparecer. Aquele miojo já deve ter esfriado faz tempo quando você chegar. Talvez a vela já tenha derretido inteira, ou a energia já tenha voltado. Joguei a chave pela janela, olha lá no tapete.
Não sei porque te liguei àquela hora da noite. Não era importante. Talvez, na hora, fosse. Mas me impedi de lembrar. As ruas estavam escuras, não se ouvia um pio sequer, uma buzina ou um carro derrapando ao longe. Uma bicicleta jogada num canto da calçada, a lua espremida no canto de um prédio, e um tênis jogado nos fios elétricos. Talvez  eu estivesse com medo.
Também não sei porque fui atrás de você no dia seguinte, com aquele bafo característico de quem passou a noite sem uma escova de dentes. Assustei-te? Pois, que eu me lembre, você fingiu que não me ouvia, não via, não olhava. Asco, talvez. Os olhos fundos, depois da noite em claro, o nariz quase adunco como sempre, os lábios inchados de uma gripe promissora. Talvez você também estivesse lá, naquela rua.
Quando a gente quer, a memória funciona como uma borracha dela mesma.
A pinga na esquina demorou mais que todo o tempo do meu mundo, e você ainda não voltou. Não posso dizer que estou sentindo saudades. Elas surgem ou antes, ou depois. Nunca na hora. É como o cansaço do cortador de cana. Na hora, só o que lhe vem na cabeça é 'mais um pé, mais um'. Chega em casa, e morre na cama. Dia seguinte, levanta-se sem um copo de café para mais um dia de briga. Amanhã, talvez.
Não posso lhe pedir para me esperar na frente de casa, porque eu não vou aparecer. Não posso lhe pedir para me ligar, não vou nem olhar as ligações perdidas. Porquê? Acho que vou tentar a indiferença.
Mas posso lhe garantir que, daqui uma ou duas semanas, eu vou estar lá de novo. Voltarei, e você não estará em casa. Seu miojo estará pronto, e nem trabalho eu terei. Deixarei outro bilhete como este, e quem sabe você responda."

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