domingo, 17 de abril de 2011

Remoído

Saiu da aula inspirado - queria porque queria escrever alguma coisa. Chegou em casa, esqueceu de fechar a porta, sentou na mesa. Abriu o caderno. E ficou ali, parado, olhando fixamente a folha em branco. Esperando que, como por mágica, ele visse uma luz, sentisse um cheiro, ouvisse uma música ao longe ou lembrasse de algo que o motivasse. Sabia o como. Não tinha o sobre. E nada daquilo chegar. Esperou mais um pouco, insistiu. A campainha trazia o aviso da porta aberta. Oh, obrigada, mil desculpas. Alguns passos até a cozinha, caneca, leite. Puro? Não, com chocolate. Sentou de novo, dessa vez com a caneta já aberta, a postos, na mão. E nada. O ponteiro do relógio já estava cansado. Olhava com pena e súplica para o garoto sentado: por favor, não me faça esperar mais! Mas nada. Foi até o dicionário, abriu numa página qualquer, querendo encontrar o que precisava. Chegou ao verbo "selecionar". Não era muito expansível. Se deu uma segunda chance: "pedra". Pedra selecionada, selecionar pedras, hum, não. Ainda não. Uma metáfora distante se formava, mas tão lugar-comum! Abriu de novo o dicionário. Dessa vez uma esperança: "jangada". Selecionar jangadas, Jangadas selecionadas, Pedra da jangada, Jangada de pedra. Mas não, isso já existe, maldito Saramago! Desistiu do dicionário e foi novamente até a cozinha. Olhou pela janela e pensou em ligar para ela. Não, seu idiota, você nem ao menos tem o telefone. Mesmo se tivesse, a coragem morreria antes da dúvida. "Alô? É... eu queria... perguntar..." BIP. Desliga. Resolveu, então, escrever sobre qualquer coisa. Tentou sobre a caneca vazia, não deu certo. "Ali, parada, vazia. Usada" não era um bom começo. Adjetivos demais. Tentou sobre a janela da cozinha, mas esqueceu a frase que lhe veio à cabeça. Pensou em poesia: não precisa de rimas, quanto menos, melhor: vai parecer contemporâneo. É, isso mesmo: poesia. Mas ele achava que precisava de profundidade. Perdeu. Ligou o computador e abriu o facebook, queria esfriar a cabeça. Lembrou de adicionar aquela garota nova na classe, de curtir a banda que descobriu no dia anterior. Abriu o twitter, orkut, msn... Nem lembrava mais do que estava procurando. Abriu uma nova aba, entrou no dicionário online procurando a "palavra do dia". Nada. Mais uma daquelas palavras técnicas demais, restritas demais. Desligou o computador, sentou na mesa. Tirou da cabeça a prova do dia seguinte e se concentrou. Tentou, na verdade. Colocou os dedos em torno da caneta, a caneta sobre o papel, desenhou um A. Continuou: "A dir...". Direção era o que queria, em todas as suas formas intrínsecas. O vento entrava pela janela, levantou-se e fechou. Escurecia, acendeu as luzes. Colocou uma música pra tocar. Tocou uma música, pediu uma pizza. Sentou na mesa de novo. "A direção das grandes coisas/ou mesmo das grandes besteiras/Deixa...". A caneta corria pelo papel como que formiga ou cachorro atrás de carro. Quando se deu por satisfeito, toca o interfone: a pizza. Separou os vinte e dois reais mais a gorjeta e chamou o elevador. Esqueceu os sapatos, corre que o elevador chegou! Subiu com a pizza, comeu, guardou o resto pro café da manhã. Sentou de novo, dessa vez pra reler. Não estava gostando nada daquilo, tomou forma sem consciência, lhe deu medo. Procurou o celular, guardado na mochila. Chega a mãe, depois o pai. O trabalho foi cansativo, como sempre. Como todos os dias de trabalho estressante. Boa noite, filho. Boa noite, pai. Tem prova amanhã? Não. Tá bom então. Boa noite. Tirou o caderno de seu esconderijo e o abriu, furtivamente. Aquilo era seu ouro, o supra sumo de seu cérebro. Guardou em um lugar especial na prateleira e dormiu, esgotado. O dia entrou pela janela aberta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário