quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Arroubo

Há tempos que ninguém entra na casa. As cadeiras de balanço foram deixadas para trás, os carrinhos de bebê foram deixados de lado, as janelas grandes e reconfortantes foram esquecidas. Janelas do teto ao chão, que ela polia com esmero todas as manhãs, que a abrigavam do vento e chuva, que mostravam por seu vidro de proporções dantescas um jardim. Um jardim como outro qualquer, mas todo jardim tem suas flores... As cortinas se tornaram puídas, repletas de ovos de maria-fedida. As cadeiras de palhinha da varanda foram abandonadas ao relento, e já não há mais palhinha: apenas um resto de refeição cupinesca. Na cozinha revestida de descascados azulejos portugueses, a louça tinha sido lavada na última estada, mas nem mesmo o mais brilhante cristal resiste à poeira. Um rádio, pousado ao lado de um belo vaso de petúnias (das petúnias em si, nem sinal), fora deixado ligado. As baterias acabaram, mas o botão retrô de on/off ainda estava voltado para o lado on. No quarto, a cama jazia como que recém feita, e com um espesso cobertor a mais: com a janela do quarto quebrada por algum garotinho malandro, era de se esperar que os lençóis de seda estivessem forradas de dejetos de aves, roedores, insetos... Em suma, descuido quase que total. O pequeno banheiro só vencia seu quarto adjacente por um fator: a colossal trilha de fezes aviárias que encobria o centro do espelho.

A volta àquela antiga morada trouxe choro, aquela sensação de desperdício e vergonha interna, uma pitada de arrependimento. Aonde estava a tão falada "jornada pelo auto-conhecimento"? Onde estava a sensação de completude, de "paz interior"? Já tinha procurado. Abrira cada compartimento, gaveta, armário, cofre e porta que pôde encontrar... E permanecia vazia. Incompleta. Também, não sabia ao certo o que deveria encontrar: se seria alguma lembrança da infância que, quase como por mágica, a transformaria em alguém menos ofegante e ansioso para os mistérios que vieram e ainda hão de vir, se seria alguém, se seria um cheiro, uma flor, não sabia. Tampouco sabia como procurar: se deveria ficar quieta no seu canto, cuidando do jardim para que as borboletas viessem até ele, se deveria armar um escândalo e aguardar com um olhar de soslaio e um "tchan-an!"aquilo (ou alguém) que a viria acalmar, não sabia.

Só lhe restava procurar, e disso ela já estava cansada.

Deitou-se um pouco no antigo sofá vermelho - "ah, que saudades desse sofá vermelho... Pena que já me ocupei tanto que não resta mais espaço para ele. Mas talvez, com uma reforma aqui, uma faxina ali... não, pare." -, um pouco menos destruído e sujo do que a cama. Ali deixou-se largar, e dormiu.

Sonhara com uma diminuta garotinha, correndo por entre os móveis impecavelmente alinhados como se fossem lava, rindo como a criança que era, aguardando o almoço. Porém o almoço não se fez por si - onde estava todo o suporte, as muletas naturais? Ali é que não estavam. Conteve uma lágrima e saiu pela porta da frente, sem antes levar consigo uma de suas bonecas, uma moeda que achara debaixo do tapete e um graveto qualquer do jardim.

Acordou com ambos os olhos abertos e as sobrancelhas tensas, com uma gota de suor caindo levemente sob seu queixo e com um sorriso cobrindo-lhe a face. Não encontrara o que queria, mas quem sabe na próxima? Sempre há uma porta da frente para sair, um dia essa porta há de dar em alguma estrada, um dia essa estrada há de dar em algum lugar...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A tentação da mudança

Certo dia, na cidade
de vizinha em vizinha,
de bêbado em bêbado,
de pai pra filho,
de garçon aposentado
pra jornaleiro e bóia fria,
começou o falatório
que a moça da rua cinco
(imagine, que vergonha) 
tinha ganho um passarinho
que falava, ora essa
e que foi o passarinho
esse tal de papagaio, 
que vivem falando nos jornais
"ameaçado de extinção!",
que botou a casa abaixo
gritando pra quem ouvisse:
"olha a traíra, marido, olha a traíra!"

Foi tamanha confusão,
chamaram até bombeiro,
escândalo como esse
a cidade nunca tinha visto.

Parece que a vizinha da vizinha
da prima da dita cuja,
ouviu dizer que todo dia
assim que o tal marido saía pra trabalhar
todas as cortinas eram fechadas
todas as portas trancadas
(até a chaminé tampava!)
e logo depois saía a moça
com seu formoso passarinho ao ombro
passava na padaria,
comprava leite, açúcar e trezentos gramas de pão de queijo,
depois comprava uma revista de costura,
sentava no banco da praça por alguns poucos minutos
(enquanto o sol não estava forte),
depois pegava um graveto no chão 
e ia:
brincando, conversando com seus miolos,
até chegar novamente à casa - 
e então refazia seu ritual. 
Abria as cortinas,
destampava a chaminé,
destrancava todas as portas
e ia tirar um cochilo na poltrona.
Assim que acordava, fazia almoço 
e punha a mesa para TRÊS!

Mas nunca, nem ninguém
nem mesmo a faxineira do vizinho americano da frente
viu alguém sentar pra almoçar.

A mesa ficava posta até as sete da noite;
ela vinha, trocava os pratos,
colocava o macarrão recém-feito no microondas,
ia ao quarto, trocava de roupa,
trancava seu armário
e esperava, pacientemente, pela chegada do marido.

Nesse meio tempo,
nem sinal.

A não ser pelo papagaio,
que rondava o telhado,
e ouvia quando o mais novo engenheiro do bairro
que mal tinha se mudado para a maior casa do quarteirão
e se casara com a mulher mais bonita daquelas paragens,
aparecia na porta da casa,
lá pelo meio dia,
e se escondia no banheiro.
Mas isso nem a vizinha da vizinha
da prima da moça
sabia.

Quando o Seu Delegado 
chegou com uma tal de autorização
pra uma tal de averiguação
dos "fatos ocorridos",
encontrou nada mais,
nada menos,
do que o marido dormindo na poltrona. 
A mulher saíra para trabalhar,
deixara seu papagaio no ombro do homem,
e o tal engenheiro podia ser visto pela fresta da cortina
correndo feito louco pelos telhados adjacentes.

E sai o Seu Delegado
(agora com um tal de mandado de prisão
junto com um de busca e apreensão
do que quer que estivesse com o "elemento")
atrás da criatura.
O encontra no bar da esquina
tomando uma pinga barata
com uma lâmpada na mão.
Seu Delegado pega a lâmpada,
prende o engenheiro,
toma o resto da pinga
e volta pra casa.

No dia seguinte, as manchetes
de todos os jornais
diziam:
"Papagaio malandro salva casal de famoso ladrão de lâmpadas".

Mas a fofoca na cidade persistia
e até hoje dizem por aí
que o tal engenheiro era eletricista,
que o papagaio era a mulher,
que a mulher era a faxineira
e que o homem era,
nada mais,
nada menos,
que Seu Delegado - 
que ficou com vergonha
quando descobriu que Adriano, o papagaio,
era Adriana.



segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

E se empertiga na cadeira para mais uma falta de haver.

Passagem

É algo como um desespero - mas sem a corrida, o galope que acompanha. Um olho, o outro, nariz, boca, de repente a consciência de um corpo inteiro. À sua tenra disposição - não, apenas a seu olhar buldogue. A lembrança do não ocorrido (mas sim esperança) sacode as recém-penas de fora das cinzas, mostrando a que veio... Mas os braços e lábios e dizeres e ouvidos e pequenas palavras ainda não têm o brio necessário (necessário? Não, apenas conveniente... Mas que conveniência haveria nisso?). Sua língua caminha por temas nada imprescindíveis. Finalidade obs-tru-í-da. Raras vozes de consolo, permeadas por fichas caídas e reconsiderações. No fim algo frio, frio, congelado. Uma saudade encarcerada em um corpo de pedra, tempo e posição. Não era tarde, nunca seria tarde. Mas o sol já tinha nascido, era outro dia...

sábado, 17 de dezembro de 2011

Faísca

Uma luz reage
Tal raio faceiro
Um impulso ruge
Carruagem-cocheiro
Tua mão age
Crime sem cheiro
Uma gota arde
Um olho porteiro
Consequência em parte
Razão por inteiro
Explosão encarde
Coração ligeiro.

sábado, 15 de outubro de 2011

zangão, prazer efêmero.

Acorda, uma manhã de puro sol
De mel, quase em flagrante cristaliza
Concerne às janelas leve brisa
As nuvens a seu tempo: caracol.

Resiste, a todo custo, e fisga o anzol
Que a toda esperança escraviza
De pé, olhos errantes, agoniza
Aguarda a luz errática, farol.

Destina aos ratos seu caminho errôneo
Persegue vã por um atalho guia
Sem mais saber, pede que seja idôneo

Atenta à mentira do bom-dia
O cheque-mate, seu olhar gorgôneo
E parte, com a noite, a harmonia.

domingo, 2 de outubro de 2011

O Presente

     Chega com a encomenda debaixo do braço, a contragosto. Larga o volume abandonado em cima da TV, faz jantar, pipoca, transita por alguns canais vazios. Adia o encontro, a coragem. Segura com os dedos em pinça as páginas e as abre, como quem disseca. Lhe puxa ao consciente como quem vomita. Agonia. Persiste por mais algumas letras miúdas. O inocente se torna o assassino. O assassino é inocente, e o juiz é culpado. A ruína lhe volta às lágrimas e atira bigornas a seu corpo leve. A memória do engano se confunde à tragédia metódica de todas as manhãs. Uma janela aberta e um escape de cor, mãos rudes e faces hepáticas. Não quer ver, nem pintado a ouro.
     Surge e brota de todos os cantos. Está. Em cada pulo que amputaram. Em cada curva, em cada vão. Em cada pedra no caminho, em cada verso do Drummond. Não foge, não fica. Lida e contorna, mas retorna. Cada ensaio é um tombo a menos.
     Empurra as últimas frases goela abaixo, regurgita amarguras e retém cada padrão, embrulha bombas em papel de presente.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Conexões - II

Entreabre os olhos, empurra os pés relutantes de encontro ao piso frio e pisca. A veneziana continua aberta, e uma ponta de sol engatinha no horizonte. Chama a força para se pôr em pé, não vem. Chama então a trégua. O caminho a leva ao tropeço, põe de volta, de onde nunca deveria ter saído. Acende uma vela ao depois e ao talvez. Reza pelos milagres por vir. Escolhe tua família...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Conexões - I

E se desfaz em nuvens, aquela que não é mais. Clama por quem te deu a vida, grita às janelas fechadas e despenca no mundo, frio. O vapor sujo das arandelas se mistura à fumaça de cigarros baratos, fazendo em matéria os sonhos inconclusos. Pega um fósforo e queima seu sorriso, ganha um presente do céu, a chuva. Regado a aromas-disfarce e beijos roupados, o dia se esfarela em luz, e a poeira branca das esquinas rescende a luz, e seu olhar antigo é tomado por luz, e aquele peso no estômago é luz. Dor lancinante, faca de prata, face do insuporte. Uma gota de esperança pinga. E se desfaz em nuvens.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

alvor

Cai o mundo. Aquele mundo, lembra-se? Aquele mundo de estrelinhas no teto e nuvens sem-teto, aquele mundinho de palavras escassas e desentendimentos em excesso... Pois é, 'tá caindo lá fora. Acho que o mundo cansou de si mesmo, e resolveu pular da ponte, pra ver se resolve. No mínimo põe um prego na roda. O mundo se suicida do lado de fora da janela, e nós esboçamos as primeiras reações ao fim. Olhe também à sua volta, não só ao seu umbigo sujo e fedido. O camarada ali agachado era outrora aquele mão-de-ferro, lembra-se? Se desfaz em desespero. Aquela garotinha não desgrudou o olho da ruína, me espanta. É sempre aquela dinâmica do trem. Passa um, passam dois... Quando vê, já passaram tantos trens e tanta gente que não há tempo para pensar quem queremos levar nessa viagem, nem para onde iremos. Passamos tanto tempo distraídos que um bocadinho de concentração não será mais relevante. Dizem que quando percebemos o fim, nossa vida inteira passa em frente a nossos olhos. Todos esses trens, de novo; mas apenas assistimos de fora, de longe. É o tal do passado...

Tem gente que pira, tem gente que gosta e sente até prazer. Esse passado está aqui presente apenas para garantir nosso futuro. O passado é um pai que nos olha e protege. Um pai construído pelas nossas mãos calejadas, um pai com quem não temos obrigações morais. É uma tentação e tanto construir o passado... Pena que já passou. Quem sabe, numa próxima.

Ou até agora, não é mesmo?

Afinal, com o mundo caindo, não temos nada a perder. Veremos como vai ser esse futuro, filho...

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

katar aves?

O livro aberto já não traz novos mundos, e o calor ígneo de suas páginas agora faz suas mãos hirtas. O estalar prazeroso das juntas de seus dedos se curvando em torno do corpo de uma caneta foram substituídos pelo martelar incessante de pequenas teclas. Suas vértebras quase podres buzinam em seus ouvidos quase moucos por uma melhor postura, ou uma cadeira nova, daquelas sempre presentes em consultórios médicos. O que vier primeiro, estará esplêndido a seus olhos míopes. Ganhara um pesadelo de presente, e agora tratava de transfundi-lo em utopia. Assim, sobraria mais espaço para os sonhos...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Escrevo

e talvez isso me faça melhor. Talvez me faça um alguém menos tenso, menos contido. Menos prisioneiro. Talvez essas letras sirvam como um subterfúgio, uma válvula de escape, tal qual panela de pressão. Talvez eu não saiba para quê escrevo, para quem ou quais são as minhas intenções. Todas essas burocracias de preenchimento de ficha são dispensáveis: escrevo, logo existo. Tudo está ali, basta olhar com os olhos certos e ter paciência. Buscando nos lugares certos, encontrará todas as faces, todas as caras dadas a tapas, todas essas pequenas coisinhas que fazem cada um ser cada um, e não o vizinho.

Ali estarão todas as minúcias de minhas memórias, e descrevê-las cientificamente seria um genocídio de lembranças indefinidas: aquelas em que restam apenas direção e sentido. Nada de módulo, nada de valor preciso, nada de nada. Nada é de graça. Não é assim que a memória funciona.

Cada palavra traz consigo uma montanha de significância. Signifinfância, signifiscência. Signifidulto, talvez mais tarde. Elas não são todas bonitas, limpas e cuidadas, nem sempre foram guardadas num local brilhante e aquecido. Há palavras feias, palavras de-te-ri-o-ra-das, palavras fedidas. Palavras em molambos. Formam andrajos, que carrego com um misto de vergonha e orgulho.

Cada naco de promessa que escrevo se desliga de mim na primeira oportunidade. Não há cordão umbilical, e sim uma tomada. Eles vêm, ficam plenos de energia e esquecem de pagar a conta. Vão caminhando, independentes, granjeando sentido por onde passam. Não há uma dura poesia concreta sequer nessas esquinas. Há mato, há gente, há amores e decepções, rescendem a seu aroma rígido urbano. E então retornam, implorando por mais. Volta e meia, esses passeios duram dias, semanas. Espero pacientemente por cada um, dou um banho, uma polida, penteio suas franjas rebeldes e arrumo suas mochilas.

Virou natural, não mesmice. Afinal, escrevo.

sábado, 23 de julho de 2011

post

“Barcelona, 15 de agosto de 1938.

Querida Penélope,

Escrevo-lhe depois de tanto tempo para relatar minhas mais recentes peripécias nesta cidade de lixívia e carvão. Melhor dizendo, lixívia, carvão e pólvora. Minhas noites são regadas a desassossego, assim como a de todos os desafortunados que possuem Barcelona como morada, aguardando a cada passo um novo confronto. Só fazemos esperar, e que isso traga um melhor futuro.
Aqui, até as pombas que rondam as ramblas são incrédulas. O povo está confuso. Seu estado normal é o ébrio. Outro dia, um dos poucos com céu azul e sol, quando se podem ver crianças e velhos andando pelas praças e bondes, topei com uma lojinha qualquer de esquina. Sua dona, uma senhorinha de olhos caídos e vestes acinzentadas pelo medo, olhava para o longe, forçando a vista. Indaguei-a acerca de uma blusa xadrez. Não tinha idade para ser surda.
- Com licença, a senhora tem blusa xadrez no estoque?
- O quê? Cacharrel? – responde a tal.
- Blusa xadrez, com padrão xadrez, linhas cruzadas... Conhece?
- Como? Gola em V?
E em seguida mostrou-me uma infinidade de moletons e malhas com decote em V. Logo se notam os efeitos do caos que a acomete.
Também não ando lá muito veemente. Tenho saído pouco, meus almoços se reduzem a um café com leite (obtido, e digo, às custas dos vizinhos de caixa postal...) e a cesta de lixo nunca esteve tão abarrotada de papéis. Amassados, rasgados, por vezes inteiros... Talvez sintoma de arrependimento, e uma esperança tardia de que todos esses personagens desperdiçados retornem das cinzas.
Há algumas semanas dom Agustín, o relojoeiro, me ofereceu um passeio ao parque. Lembrando de seus antecedentes tendendo à homossexualidade, recusei. Creio que me arrependo, poderia ao menos ter respirado um pouco de ar puro, e me libertado por alguns instantes dessa atmosfera de tabaco e tristeza.
Procuro ler, sempre que possível, os jornais da manhã. Acontece que o dinheiro anda curto, e ninguém precisa ler as notícias da guerra: basta abrir a janela.
 Recebi uma caneta tinteiro de prata. Chegou pelo correio, sem remetente. Acreditei ter sido sua, mas a encomenda era nacional. Reluz ao mínimo polimento. Não a mereço, minhas palavras refletem apenas a negra poeira das ruas e os preteridos. Além disso, me falta a tinta. Enquanto esta não vem, contento-me com os tipos regulares da máquina.
            Da última vez que acreditei ter chegado a um resultado bom, senão ao menos satisfatório, descobri que a tal história já existia. Ou estou ficando desmemoriado, ou sou um lugar-comum. De qualquer forma, peço para lê-la, e que fique registrada a minha incapacidade para com as palavras.

‘Enquanto escrevo, um homenzinho me observa pela janela, do outro lado da rua. Seu rosto está encoberto pela sombra, e só o que se vê é a luz queimante da brasa de um cigarro. Certamente que usa luvas. Daqui, enxergo seus dedos se dirigindo calmamente à sua boca, e novamente pendendo ao chão. Esse ritual sereno se repete indefinidamente: não se cansa. Se prostrou estrategicamente embaixo do poste de iluminação, de forma que dele nada se vê, abaixo do chapéu. Algo entre detetive e zorro, um quase personagem fictício, etéreo, onírico. Joga a ponta no chão e a esmaga com o que lembra o sapato da minha avó: preto, pequeno demais e com uma ponteira branca ridícula.
Ele sabe que o observo, e creio que é isto que o motiva a permanecer ali. Agita uma nota de algum valor e me chama. Não vou. Volto meu olhar para a estante, a poltrona, a porta da cozinha. Esta última me convida, e parto para preparar um café, na esperança de que, nesse meio tempo, o tal já tenha desistido e deixado de ser teimoso.
A lua entrando pela janela de frente à pia se torna uma visão estonteante. Ao retornar, a intuição se confirma: a figura continua a postos. Tomado de uma raiva subido, abro a janela e grito algumas palavras nada finas. Não obtenho nada em troca, exceto os berros da vizinha debaixo.
Cogito chamar a polícia, mas já estou metido em dívidas demais. Resolvo deixar como está. Desta vez, eu sou quem desiste.
Já sabia o que ele queria obter desde o início. O sujeito não me era estranho: o homem do esbarrão no bonde, o do jornal no café, o dos papéis no banco. Atiro pela janela, em sua direção, estas últimas palavras. Caio na própria poltrona, vencido pelo cansaço. ’

É isso. Só não espalhe aos quatro ventos suas críticas (por assim dizer, protecionistas), e estaremos em paz.
            Arrumei um emprego como pianista num bordel, quase todas as noites. O vizinho da frente me julga o homem mais sortudo do mundo, embora não seja bem assim. As moças ali são tão carentes quanto os homens que as arrastam para os lençóis.
            Espero continuar aqui, talvez até o fim desses tempos. Não sei. Mercedes lhe manda lembranças, e espera poder te ver logo. Eu também espero.

Um abraço,
Miquel “

Miquel não toca piano, nunca viu a guerra nem, tampouco, Barcelona. Penélope? Somente um sonho.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Suco de maçã com sal à uma da manhã

     Sentia gosto de sangue. A língua que insistia em raspar o ferro solto do aparelho clamava por piedade, e talvez um tantinho de desculpas. Tornara-se insensível aos pouquinhos, a cada pequeno arranhão. Depois de um tempo, só o gosto de sangue. O gosto envolvente e repugnante de sangue. E nostálgico.
     Os minutos passavam tal qual água em torneira quase fechada: de gota em gota, lento, mas de repente já se foram muitos. Minutos desanimados, minutos esperançosos por uma resposta, por uma carta no correio, minutos saltitantes que dançavam alegremente sob o sol, no jardim. O ritmo em que inspirava e expirava o ar não condizia com o mínimo necessário, nem com o mínimo esperado, ou o mínimo mesmo. Mas não havia problema algum. Talvez só falta de açúcar.
     Essa sensação, esse sentimento vazio, esses dias nublados e o vento assobiando na janela, e as noites frias e seus cobertores compunham o cenário perfeito, e agradavam. Oh, agradavam... Porém não satisfaziam a fome de tempo não-cronológico: tempos esses de acontecimentos. Não era Ana Terra, afinal. Seus ventos não traziam novidades.
     O breve toque do telefone mostra a desistência do outro lado da linha e o desapontamento deste lado, eternamente à espera. Um livro aberto em qualquer página e jogado sobre a mesa, um filme aguardando ser visto, milhões de pequenas dicas espalhadas pelo espelho. Uma espera dramática de carteirinha.
     Ora é um pé que dormiu, ora é a coluna de velha doendo, ora a dor no pulso que não gosta de passar. Talvez um pensamento extinto, ou mesmo aquele velho rancor guardado no fundo de suas caixinhas de sonhos. Quando era pequena, sua mãe dissera para guardar seus sonhos em caixinhas, bem organizados, para poder sempre lembrar deles. Ou pelo menos não os deixar empoeirar. Criança tola, acreditara em caixinhas físicas, coloridas, cobertas de pano, lantejoula e rendas. Aos poucos ganhara maturidade suficiente para fabricar essas tais caixinhas, em pensamento.
     Não sabe até hoje, porém, qual seria essa "idade madura", ou a partir de que ponto era considerada suficiente. Apenas lhe incutiram uma frase pronta e feita qualquer, e ela que se desse ao trabalho de digerir.
     Pensa até mesmo em refletir sobre qualquer coisa. Algum assunto que não tenha opinião formada. Mas a variedade é tão grande que desiste, perde o entusiasmo.
     O navio dos rolês zarpou do porto há eras.
     Assim como Calvin, acreditava que os dias de verão foram feitos pra fazer alguma coisa, mesmo se for nada. Especialmente se for nada.
     Era inverno, mas tudo bem.

"(...) E soprava aquela brisa gelada daquela manhã de agosto..."

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Asta-i drept, pe Dumnezeu.

     Ele vinha vindo, assim, de mansinho. Olhava prum lado, pro outro, de longe. Prosseguia alguns passos incertos, seus olhos rastreavam o ambiente e, oh, aqui estava, bom dia! Sentava do lado, falava sobre o tempo, goiabas estragadas, a puta da esquina. Puxava um assunto e, se o outro entrasse na brincadeira, continuava. Sentava como que se levantando. Talvez por isso não fizesse tanta falta. Era ininterruptamente efêmero.
     O tempo, para ele, não era. Já foi, mas não será. Vai por inércia. As lâmpadas do seu quarto queimaram há décadas. Poderiam ser somente alguns dias, mas ela continuava queimada.Seu papo taciturno talvez entediasse. Gastava silêncios como um ofegante: aos montes. Selecionava as melhores palavras e as distribuía a conta-gotas.
    Carregava um peso nas costas e outro na consciência. Cobria os braços de casacos como seu id de muros. Cobria os negros fios de cabelo os olhos igualmente negros, e nos deixava na dúvida quanto à sua veracidade.
     Ganhava inúmeros presentes em pensamento, mas jamais os retribuía. Afinal, eram irreais.
     Não garantia seu futuro, embora próximo e necessário; porém era, por si só, um poço do passado.
     Lento, seguia caminhando, um pé na frente do outro, um passo de cada vez. Ouvia Chico e derramava baboseiras românticas. Dispersava-se em ideias, transbordava dinâmica. Acabou a música e já não é mais o mesmo: laconismo.
     Não era comum, tampouco absurdo. Sabia ler, escrever, falar, respirar e ouvir. Nessa ordem. Não era humano nem desnaturado. Arte-final não era, mas o esboço tinha ficado para trás. Poderia bem estar em extinção. É, talvez estivesse.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Mareio

- Tá frio.
- É, tá frio.
- Não quer ir lá pra dentro?
- Não, aqui tá bom.
Batia forte na cara, a brisa que vinha. O frio ardia e queimava mais ainda as bochechas do pequeno.
Sentado na proa, recebia o cheiro salgado de frente, peitava o cheiro salgado daqueles mares. Com uma coragem nunca vista, desbravava caminhos inexplorados, enfrentava monstros aterradores e acordava com qualquer balanço mais vigoroso. O pequeno gostava daquilo.
Passou a mão pelo lenço na cabeça e suspirou. Lenço não fica bem, pensou a mãe. Iria já trocar por um elástico qualquer, mas parou no meio dos passos.
Um estrondo.
Apenas mais uma panela que caiu, apenas mais uma panela que caiu com o mareio, apenas mais uma.
Mas o Destino gostava de supreender.

Dessa vez, o magrelo cãozinho vira-lata resolvera derrubar a cadeira do comandante.
Que não mais ali estava.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

May be


"Queria acabar de uma vez. É, e não há melhor início para esse bilhete inesperado de semi-despedida: vou, mas volto. Pego um ônibus qualquer, o primeiro trem da madrugada, uma carona na beira da estrada, uma canoa, o que for. Se preciso, irei andando. Mas vou. Meus sapatos estão gastos e minhas unhas roídas. As roupas no varal são pra ficar lá mesmo, no varal, inclusive aquela camisa velha com uma mancha de vinho barato na lapela. E ai de vocês aí se tirarem um cisco do lugar, um cisco do luar. Aquelas velhas gaivotas sinalizarão o atracar do barco, e então cá estarei eu. Quando vocês se derem conta, já terei virado o corredor e será tarde demais. Deixo esse guardanapo podre apenas como forma de não arrependimento e lembrança. No fundo, não quero acabar-me, mas acabar-me-ei, em alguma coisa que não risadas. Tenham certeza disso. 'Té mais'."

sábado, 11 de junho de 2011

understanding


- Ei, garoto, sai daí.
Passou o palhaço, o elefante, fumaça, mil luzes, o coelho na cartola, o dia. O rosto redondo e sorridente do palhaço, redondo, sorridente e cruel, redondo, sorridente, cruel e frio. Aceita uma flor? Tchá, água na cara, rá! Não tem graça, mamãe, vamos embora, não teve graça, seu guarda. Mas as luzes, e as palmas, e o calor abafado, os amendoins massudos, aquele gosto de desassossego, ah, aquelas luzes... Levanta-se e se agarra àquela luz, vai, garoto, suba no palco! Agora é sua vez...
- Garoto, vamos, colabore, eu ganho pouco pra fechar esse lugar, 'cê vai deixar meu filho com fome.
Fome, fome, fome, dinheiro, a noite, nada. O mágico o conduziu por entre as belas dançarinas, passou a mão na juba do leão, pôs o pé no primeiro degrau da longa subida rumo ao trapézio. Vai, garoto, tu consegue! Olha pra trás e encontra uma lágrima, duas mãos unidas, unhas roídas, desespero e um grito, vai! Quer que eu escolha outro garoto?
- Vamos, onde está sua mãe?
Ali, ali torcendo por mim, ela não sabe o que fazer, se descabela, sua mão topa com uma parede invisível e dali pra frente, nada mais é dela, nada mais é previsível, nada mais existe. É seu filho, será meu filho, será, meu filho? Mais um degrau, a platéia vai ao delírio, olha o garoto, meu filho! Olha mãe, quero ser igual a ele! Compre amendoins pra mim também? Não, não pode subir! Desçam daí, vocês dois! A primeira fileira se acalma, os tambores rufam, algumas notas numa espécie de trompete desafinado marcam o terceiro degrau. O garoto olha pra cima e força um sorriso. É alto. De repente a escada se transfigura numa pilha, vira prum lado, pro outro, bambeia. Mas vamos, olha lá, a garota te espera e te ensina a pular, é uma delícia, veja com seus próprios olhos! E já está a poucos instantes dali. É festa, é choro, é riso, é a suposta estabilidade, é o zumbido incessante nos ouvidos e o bêbado tropeçando a cada paralelepípedo.
- Tome um brinquedo, garoto, e saia daí.
"Zonzo de ver tambor bater pra quem é daqui, zonzo de ver tambor bater pra quem é de lá, zonzo de ver tanta menina rodopiar, lembrou de que não era pra se lembrar e zonzeou". Berra, esperneia, chora, faz birra, quer voltar, só tem sete anos, só tenho sete anos, inquieta-se, mas está quase, não tem volta. Dá a mão para a bela garota de maillot no fim da linha. Ela lhe apresenta uma barra, duas cordas e uma rede, lá embaixo, pra eventualidade de ele soltar e cair. Segura a barra, as mãos tremulam, as luzes tremulam e mais tambores rufam, quase trompetes desafinam e mães choram. Uma réstia de luz vem do furo na lona e aponta para o chão.
- Garoto, acorda!
A corda e o pulo, o chão é longe, a febre é alta, o nariz escorre muco, sangue e vida. Estanca o grito e os pulmões saem do ar, os braços jazem moles ao longo do corpo e já não suportam seu peso. Mas ele precisa.
- Pare, garoto, pare com isso!
O sorriso da moça se distancia, a música para, o negro come o canto do olho, o guarda é o leão, o leão é o palhaço, o mágico é o elefante e o elefante já não chora. A sebe rasteja e o sapo fica estático. Uma última luz, ei, quer uma flor?
- Vamos, garoto, acabou o espetáculo.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Vai, não

- Preste atenção, garoto. Não vê o lado frágil desta tábua? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, meus pés hão de ser firmes e meu corpo, equilibrado. Ao lado só há o nada; porque temer o nada, se não sabemos o que nele há? Temer o desconhecido é ter medo da luz do sol. E do lado da tábua.
- Tome tento, garoto. Não vê teus cadarços desamarrados? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, meus cadarços são meros fios de corda, não têm força para me puxar ao solo. Caso enrosquem nos meus dedos e, por um momento, minha cabeça penda ao chão, logo meus braços me levantarão da queda.
- Cuidado, garoto. Não vê que há um vão nesta ponte? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, pois só se não tivesse olhos. No caso de não o tê-los, peço ajuda e oh, lá vem a ajuda. E me tira do sufoco do não-ar-haver.
- Bote os miolos no lugar, garoto, não vê que onde está nem ao menos é ponte, é barco? Vai cair, vai cair.
- Não vou não, e sendo barco, que me leve para longe. Sendo barco, que me equilibre nas águas rasas e nas águas fundas, nas calmas e nas revoltas, e que aporte num cais seguro. Ou noutro barco. Sendo barco, que não fique, acompanhe.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Tennessee

O celular emitiu um bipe. Mais uma daquelas mensagens de propaganda, "envie GOL para 48600 e receba notícias da copa". A copa já passou. A rodovia vazia chama o sol no horizonte, uma saída pra uma estradinha que poderia ser de terra. Sem poeira, sem buracos, paralelepípedos acompanhando. Quase em branco e preto, aquela poderia ser uma paisagem de quase 1960, os Fuscas tinindo e um ambiente certo. Correto, estável. Vira, esquerda, direita, a casinha pitoresca no fim da estrada já se destaca, atrás o meio abandonado. Olha onde ele veio se meter. Quando recebeu a ligação, coisa de uma hora atrás, esperava estar chegando agora em um prédio qualquer no centro.
Apavora-se com o entorno da casa. Poderia estar MESMO em 1960. Reduz a velocidade, faz a curva e deixa o carro engatado. Sai cauteloso, sobe os três ou quatro degraus e toca a campainha. Uma senhora abre a porta e revela uma cena típica de uma família inglesa, o chá das cinco. Diz a que veio, não mora nenhum Peter aqui. Mil desculpas, devo ter me confundido. Vira as costas e tropeça, desorientado, até que a verdade o atinge pelas costas.
Volta e a abraça.

terça-feira, 3 de maio de 2011

fanteano

Vou subindo a escada, não, Abelardo, você não gasta com essas coisas, não pode, "vem cá, quer ver como se divertir essa noite?", quanto custa, vale um sapato e um saco de laranjas na venda do japonês, a escada acaba, um corredor, não, ainda dá pra voltar atrás, mas você não quer, Abelardo, ah, bem que você queria aproveitar, dois dólares e mais nada, são tudo, o dinheiro da mãe, mas sempre há dinheiro e sempre se pode pedir mais, o japonês pode dar um desconto na próxima, a avó pode mandar mais dinheiro, sempre, aquele meu pai cafajeste bem que podia aparecer, ou um qualquer, verei meu nome na capa das revistas e jornais e todos falarão de mim, ganharei dinheiro, sim dinheiro pra gastar com essas coisa, oh, não, a porta, "entre, se acomode", um quarto comum de motel, o clique da chave atrás de mim, não, Abelardo, arrombe a porta e saia correndo, volte para a sã consciência, seja corajoso, deito na cama, ela sobre mim e tua boca encosta meu pescoço, minha mão sobre teu cabelo e pensamentos, volte, Abelardo, sua mãe, Abelardo, imagine ela quando souber, você está em maus lençóis, me atiro para o outro lado da cama e me sento, me levanto como alguém que se levante em grande estilo e se lembra de um compromisso, afinal minha agenda é cheia e não há tempo para tolices como essa de entrar num quarto qualquer com uma mulher qualquer, ela nem ao menos é loira, Abelardo, o que você faz aqui, saia agora, mas continuo quase deitado, dois dólares e uma cabeça, "dois dólares", pois tome quatro, tenho pressa, visto o casaco e o frio da escada me espera junto com o vazio, a bronca e o machado.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Precaução

A música soa o vazio de seus olhos, o olhar soa no vazio de sua música. Não quer que retome do silêncio, jamais. Eterniza um momento de muitos, fecha as janelas para o frio lá fora. E espera, do fundo de seu sentimento, que isso baste.

Mas não há cobertores, e neva.

"Conspiração..."

Abriu o e-mail num gesto mecânico.

"O que eu sinto, foi o que perguntastes...Pois creio que essa resposta ainda não foi encontrada, nunca foi e nem será. Se apenas nós sentimos o que queima essas nossas entranhas, como podem os outros procurá-la? Sobra a gente.
E a gente muda, ora sente, ora não. Quando sente, nos arrebata de forma tão intensa que ficamos mudos, surdos e cegos do que virá, do mundo. Agora, nosso mundo está ali, à nossa frente e o resto não existe.
Esse é meu mundo, volta e meia. Os outros são meros figurantes. Nesse mundo, o mero tropeço (em todos os seus sentidos intrínsecos) nos mata. Do quê? Vergonha, medo, raiva, lembrança, tudo ou nada disso. Nese mundo, há a possibilidade.
E qualquer que seja a sombra de uma tesoura vindo cortar esse fio de não-tempo, meus olhos se tornam vermelhos e minhas mãos querem agir sozinhas. E se esse mundo é unilateral, mesmo um olhar provoca a barbárie, um mero encostar de costas leva à depressão.
E faz parecer de propósito. E piora, e piora mais.
Quando essa sombra se afasta ou nem chega a cobrir a luz do sol, parece.
Aí tu me pergunta:  mas parece o quê?
E eu te respondo: a felicidade."

Cegou, emudeceu, ensurdeceu.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Lado

O vento forte balançava as cortinas em pulsos, como uma mulher gorda num balanço. Vai, vem, volta. A música soava alta e initerruptamente, da caixa de som. O telefone apitava de dez em dez segundos, denunciando recados na secretária eletrônica.
O sofá, torto na parede, abrigava um corpo.
Sigo mais um pouco, uma porta à esquerda leva à cozinha, em frente um corredor, a lâmpada no lustre vistoso, queimada. O cheiro quente de bolor e o acre de cachimbos meio fumados. Aquela fresta de luz no chão, e a poeira voante.
A estante ao meu lado embolora enquanto não há alguém para cuidá-la.
Estendo a mão na frente de meu nariz e a ponta de minhas unhas encosta a madeira podre. Rangido e luz. O vidro quebrado da janela deixava passar os pássaros. Aos montes. Os lençóis rotos e sujos jaziam amarfanhados sobre o colchão, fundo. Nada além. Ao lado, um baú semi-aberto guardava um bilhete e pó.
"Não me espere pro jantar" - era o que dizia. Indiferente.
Nenhuma faca, nenhuma corda, nenhuma gota de sangue manchava o assoalho. À direita, um banheiro, privada quebrada e suja do vômito. O espelho lotado de adesivos. A lâmpada pendia sozinha no teto, vidro no chão.
Dou meia volta e a cozinha me espera. A porta do armário, tímida, entreaberta. As formigas saciaram-se do açúcar, e não havia mais. Nem um, nem outro. Um resto de livro abandonado na mesa, manchado de café com leite e saudade. A xícara, posta sucintamente sobre o pires.
Volto à sala e o piano está aberto, como sempre. O banco quebrado não sustenta mais o peso de seu pianista, e de nenhum outro. O corpo abandonado já não me amedronta, me desperta curiosidade. Esse corpo levanta, os olhos brancos tontos, e me esfaqueia pelas costas.

a gente

A gente vai sentar ali, junto. Pegaremos o papel e a caneta e criaremos um mundo só nosso.
E nesse mundo amor não faltará, para nenhum de seus viventes. Nesse mundo, as garotinha de sete anos não desejarão uma Barbie princesa, elas irão atrás daquela sensação boa que sobre pelo pescoço de vez em sempre. Nesse mundo, as estrelas nos contarão sua história em forma de poesia, e nos ninarão com sua doce música.
Nesse mundo, nossos olhos estarão jamais distarão, nossos braços nos envolverão mútua e reciprocamente, e nossas mentes não terão nada além com que se preocupar. Nesse mundo, a fome não importa, a sede não importa, o dinheiro não importa. Nada disso existe no nosso mundo. Ele já é pleno.
Nesse mudo, a vida tem graça. O sorriso da velhinha comprando tomates na feira contagia todo um continente. A felicidade não é eterna e permanente, mas se renova.
No nosso mundo o tempo passa, mas dura.
No nosso mundo moramos em um coração. De favor.
Ali, a gente senta junto. Pegamos o papel e a caneta e recriamos um mundo já nosso. Porque a única força capaz de criar é o amor.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Dezoitoras perto do meio-dia

Você pega três chocolates na geladeira e senta em frente ao computador. Ninguém para falar contigo, nenhuma idéia vindo à sua mente crua. Você então levanta e sai andando pela casa, imaginando o que poderia acontecer, o que poderia ter acontecido e o que aconteceu. Se decepciona com o resultado e abre a janela da sala. Senta novamente, lê a mensagem que recebeu, continua cabisbaixo. Levanta as sobrancelhas e crispa os lábios, o olho direito arregalado e o outro dormindo. Coloca o celular em cima da folha de papel à sua frente, que insiste em voar para longe. O vento atravessa a janela e empurra seu cabelo para os olhos. Você levanta a mão para ajeitá-lo e não resiste em passá-la suavemente pela lateral do rosto, imaginando o extinto.  Se sente idiota e pensa em seu eu estúpido. Você escreve, e não é isso o almejado. Facas fatiam seu estômago e adentram seu âmago. O livro sobre a estante continua lá, e nao será por milagre que ele lhe dará uma idéia. É de dia, e as luzes não estão acesas, mas o sol brilha no poente. O céu alaranjado não te lembra nada, sua consciência se esvaiu. Uma respiração mais profunda e o pulso acelerado, de repente, te lembram do amanhã. Você espera uma ligação, mas não sabe quando ela virá. Até lá, devemos encontrar uma distração, algo que acomode. A música que você ouve lhe traz um cheiro familiar de longe. Você procura a perfeição, mas alcança um pouco além do plágio. Você quer acelerar o tempo, comandar as chuvas e os corações, e o melhor que criou até hoje ninguém viu. Você é o meio-termo, o equilíbrio, e não sabe.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Olhares metonímicos

"Oi, sou eu de novo. Você ainda não respondeu.
Tudo bem. As coisas andam corridas, né? Não há tempo nem para acender as luzes. O tempo domina você, mas você não domina o tempo.
Tem ouvido muita música? O rádio estava ligado. Estava tocando aquela música que eu te contei mês passado, 'Tribal Gathering', The Byrds. É bem boa, devia procurar.
A luz da sua rua queimou. Não se preocupe, já tomei as providências. Mas que estava escuro, estava.
Aquela velhinha que mora na rua da frente continua tocando saxofone. Dá pra ouvir daqui.
Hoje, quando tu me viu, não pude responder direito. Estava no meio de algo importante, não me lembro bem o quê. Pode ser que tenha sido uma ligação, ou uma futura. Mas ganhei um presente em pensamento, e você nem percebeu que o deu, ou foi de propósito?
Um presente em pensamento é aquela sensação boa que nos enche de confiança e ar. Muito ar. Empinamos o nariz, esticamos a coluna e seguimos por aí, felizes. É a esperança de um tempo não perdido, é outra palavra fedida jogada no lixo. Um presente em pensamento não se vê, não se mostra, não se empresta. Não vale nada, e vale mais que todo o dinheiro do mundo. Um presente em pensamento não é comprável.

Um presente em pensamento se dá sem consciência, e se retribui com um presente em sentimento.

Um presente em sentimento não se pode retribuir. Se dá outro. E então se troca, se mistura e vira um só. Exponencialmente maior.

Você fatiou esse sentimento em dois, espremeu até a última gota de sumo, acrescentou uma pitada de olhar, colocou numa jarra e esqueceu em cima da mesa.

A despensa estava vazia, e a louça, suja.
Não tinha mais guardanapo."

terça-feira, 19 de abril de 2011

Anísio e seus amigos

Era feliz naquele mundo, daquele jeito.
Não precisava de mais nada.
A vida era perfeita,
o sol era perfeito,
a rua sem buracos,
o joelho sem cicatrizes.
Todas as músicas que tocavam no rádio
eram suas preferidas,
todas as meninas que vinham falar com ele
eram as que amava.
Todos os seus amigos eram felizes,
e tudo fora feito em sua homenagem.
Uma dia escreveriam na sua lápide:
"aqui jaz Anísio, o perfeito".

Era o cenário da monotonia perfeita.
O cenário perfeito para a monotonia.
E ai de uma mudança se ela atrevesse
a chegar perto, mesmo que para melhor.

Os livros na biblioteca da cidade eram todos biografias.
Contistas e poetas eram perseguidos,
torturados e convertidos.
Jovens revolucionários
iam parar no calabouço.

As lâmpadas de iluminação pública
jamais queimavam,
e nunca havia engarrafamentos.
A praia estava sempre limpa
e convidativa.
A loja de brinquedos,
sempre cheia de crianças mimadas
e felizes. Os pais, sempre felizes.
O prefeito com nada tinha que se preocupar.
A cidade seguia feliz.
Anísio seguia feliz,
a face estampada no sorriso.

Não ouvia mais,
não via mais,
não falava,
não tocava,
seu nariz já não funcionava.
Não precisava de nada disso,
era perfeito e feliz.
Nas escolas do mundo inteiro,
as crianças aprenderiam seu nome,
como aquele que era feliz
e não precisava de nada.
Mas, por dentro,
Anísio tinha raiva de si mesmo.

Tinha instintos contidos.
A máscara que vestia dia e noite
já não lhe servia direito.
Encontrava as pessoas na rua
e elas lhe davam bom-dia.
"Mas eu não conheço essas pessoas!"
Olá, bom dia!
Se tornou uma verdade completíssima.
Seguia hesitante, aquele Anísio.

Não gostava nada de gente reprimida.
A moral da história era sempre
"liberte-se do que lhe pesa
e a felicidade é garantida".
Mas sempre sobra um restinho ali,
no canto.
Anísio estava pleno de restinhos.
Sua vida não era mais tão perfeita.
Mas só ele via, já que o mundo,
no fundo, não era dele.
Só acreditavam.
O acreditar, para Anísio, era a base.
É assim que se comandam nações,
é assim que se controlam mentes.
Só ele sabia que todos ali eram livres.
Mas estavam tomados pelo desejo
de seguir igual, perfeito,
porque "o perfeito é e era bom
e assim será, para sempre".
Anísio seguia indignado.

Mas ele mesmo era perfeito!
Deveria então ser feliz e bom!
Mas era, não era?
"De quem foi essa idéia estúpida
de plantar tais pensamentos em minha cabeça? "
Anísio seguia desacreditado.

Continuava com suas mesmas músicas preferidas,
com suas mesmas garotas amadas,
com seus amigos felizes,
com o joelho limpo e sem cicatrizes,
com o sol perfeito e sem nuvens.
Mas feliz?
Continuava feliz... Se é que já era feliz?
A cidade seguia feliz, e Anísio seguia raivoso.

Comprou uma passagem para o exterior
e se hospedou num albergue de esquina.
Acordou de manhã sem criados
que arrumassem sua cama,
sem o rádio-relógio
despertando na mesma hora
todos os dias.
Levantou sem um armário
cheio de roupas quentes,
Comeu sem seus amigos
à sua volta,
rodou pelas ruas de paralelepípedos
sozinho e com chuva.
Anísio não seguia, andava.

Mas uma hora sentiu falta
de toda aquela perfeição
do seu mundo monótono,
e voltou.
Abandonou a chance.

Anísio seguia no fundo, no chão, e igual.

Acabou no papel de pão.

"Não gostaria de deixar esse bilhete, assim tão rápido. O guardanapo até que é grande. Se acabar, a gente pega outro, depois o papel de pão, depois o folheto que veio na pizza, depois uns post-its largados do lado do telefone.
Acho que lhe devo umas explicações. Não quero me alongar, preciso ir embora. Já é tarde, e nada de você aparecer. Aquele miojo já deve ter esfriado faz tempo quando você chegar. Talvez a vela já tenha derretido inteira, ou a energia já tenha voltado. Joguei a chave pela janela, olha lá no tapete.
Não sei porque te liguei àquela hora da noite. Não era importante. Talvez, na hora, fosse. Mas me impedi de lembrar. As ruas estavam escuras, não se ouvia um pio sequer, uma buzina ou um carro derrapando ao longe. Uma bicicleta jogada num canto da calçada, a lua espremida no canto de um prédio, e um tênis jogado nos fios elétricos. Talvez  eu estivesse com medo.
Também não sei porque fui atrás de você no dia seguinte, com aquele bafo característico de quem passou a noite sem uma escova de dentes. Assustei-te? Pois, que eu me lembre, você fingiu que não me ouvia, não via, não olhava. Asco, talvez. Os olhos fundos, depois da noite em claro, o nariz quase adunco como sempre, os lábios inchados de uma gripe promissora. Talvez você também estivesse lá, naquela rua.
Quando a gente quer, a memória funciona como uma borracha dela mesma.
A pinga na esquina demorou mais que todo o tempo do meu mundo, e você ainda não voltou. Não posso dizer que estou sentindo saudades. Elas surgem ou antes, ou depois. Nunca na hora. É como o cansaço do cortador de cana. Na hora, só o que lhe vem na cabeça é 'mais um pé, mais um'. Chega em casa, e morre na cama. Dia seguinte, levanta-se sem um copo de café para mais um dia de briga. Amanhã, talvez.
Não posso lhe pedir para me esperar na frente de casa, porque eu não vou aparecer. Não posso lhe pedir para me ligar, não vou nem olhar as ligações perdidas. Porquê? Acho que vou tentar a indiferença.
Mas posso lhe garantir que, daqui uma ou duas semanas, eu vou estar lá de novo. Voltarei, e você não estará em casa. Seu miojo estará pronto, e nem trabalho eu terei. Deixarei outro bilhete como este, e quem sabe você responda."

A SOGRA

Peguei um VHS aleatório na estante, tirei o pó da fita e coloquei no aparelho.
Do meu lado, uma xícara de chocolate quente. Do outro, o controle. Faltava rebobinar. Processo lento. Finalmente chega no começo, e aperto o “play”.
Era Natal, e Natal pra mim sempre foi sinônimo de discussão. A família toda reunida, casa de uma das tias, lareira acesa. Desnecessariamente. Aquelas conversas vazias, sempre sobre as mesmas coisas. O ambiente já é propício.
A câmera girava pela sala, e viam-se duas criancinhas correndo à toda pela sala. Minha mãe e suas irmãs sentadas no mesmo sofá, meu tio tocando a mesma música no violão, a Bachianinha do Paulinho Nogueira. Minha avó estressada com a nova empregada, meu avô quase dormindo na cadeira de balanço.
A música termina e o silêncio perdura. Basta uma faísca para a explosão eminente. E eis que essa faísca surge, dessa vez na forma daquela brincadeira tradicionalíssima desde que me tenho por gente: o “amigo oculto”. O relógio da câmera mostra vinte minutos para a meia-noite. O estresse e a ansiedade se alastram, tal qual bocejo. Fim: faltam cinco minutos. Todo mundo se levantando, os mais velhos enganando o sono e os mais novos estirados no tapete ou no sofá. Bate o sino, ouvem-se fogos de artifício e o típico sorriso amarelo e forçado toma conta da expressão facial de todos.
Feliz Natal pra lá, feliz Natal pra cá, a câmera é deixada na mesinha de centro. Só o que se vê é um pote de amendoim. “Vê se melhora de emprego esse ano”. Fim da bateria.
Aperto o “stop” e rebobino a fita. O chocolate quente acabou há tempos. Paro para ouvir. Ao longe, escuto um resto de briga, que também acabou. É tarde, e tem louça suja na pia. Não gosto de louça suja do Natal. Ninguém gosta: gordura demais. Todo mundo come e compra demais no Natal. É presente pra todo lado; mas antes, a maioria invade as multidões dentro de shoppings e gasta, em um dia, o que ganhou durante um ano. É muito rápido. Depois, é diferente. Não gosto de rebobinar os VHS’s. Principalmente as filmagens de Natal. São longas demais. E quando acaba, sempre sobra.
Tem gente que não gosta da sogra. É indesejável.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Carta de pensamento

Caro Carlos,
Acho que de tanto que a gente procura, a gente cansa. Procura trabalho, procura dinheiro, procura amor, procura idéia. Pra quê, no fim? Se achou emprego, pronto, resolveu. Daqui um tempo, cá estamos nós, de novo, a mesma lenga lenga.  Se achou dinheiro, gasta. Acaba, e lá vai procurar de novo. Se acha amor, está enganado: o amor não é encontrável, ele escolhe quando e para onde vai. Tem vida própria. Como bem disse o gênio da lâmpada, posso conceder-lhe três desejos, mas no amor não posso interferir. Se encontra a idéia? Ou coloca no papel, como uma representação reduzida e submissa daquilo que não é representável, ou então puf, escapou. Passa pelos nossos olhos, entra por um ouvido e sai pelo outro. Vai, acende tua lâmpada, e vê se ela se mantém. Precisa de energia, e depois queima. A idéia é simples. Mas não é fácil. 
Aí vem você e me diz que o que procura não é nada disso. Você procura a poesia, você "contempla as palavras". Pois você pode me dizer que a encontrou? A poesia, Carlos, é como o amor: vem, mas não se deixa achar. Como você mesmo diz. Se encontrar a poesia, ela não é tua. A poesia não existe por si só, não é um ser uno e determinado. A poesia constrói sentido com aquele que identifica. Ou que se identifica. É variante. E mesmo para um único, a poesia tem suas faces: cada palavra é um pedaço de tua lembrança, de tua visão, e cada pedaço vem de um lugar diferente. Tem outro sentido. O sentido original? Se perde, e só existe com o autor. Mas, autor, não seja arrogante! A poesia é tua, mas pode ser emprestada. Ela viaja. Mas a poesia não está perdida. 
A poesia está lá. Dormindo, acordando, dia a dia, quando quer vai atrás de ti. Ela é eterna. "Diante dela, a vida é um sol estático". 
A poesia não gosta de ninguém. Ela não ama. É uma relação unilateral, Carlos, isso se tu amas a poesia. A grande esperança da vida do poeta é que ela resolva retribuir. Mas a poesia tem memória, sim. ela lembra das tuas traições, dos teus cigarros inexistentes. Ela não gosta de você, Carlos.
A poesia pode ser o efêmero. Pode ser a destruição, a morte, a própria vida e até mesmo o latido do cachorro do vizinho dois minutos atrás. A poesia eterniza, mas também acaba. Ela pode só não interessar para você, ou para o mendigo pedindo esmola no sinal, ou para aquela garota revoltada que só quer saber de rock. A poesia pode se manifestar rápida, fútil. Pode estar no gesto mais vulgar. A poesia pode se mostrar onde quiser. Ela pode, perfeitamente, estar misturada à raça. O bruto pode não ser poesia, mas a poesia pode conter o bruto. Quando ela quiser, claro. 
A poesia tem sentimentos, também, Carlos. Leve-os em conta. Ela não gosta de revolteios. Ela gosta é de mudança. Não é estática. O mundo onde ela está pode ser. Mas logo ela muda. A poesia não é de fofocas. Não a interessa se fulaninho ama fulaninha, mas esta não o ama. A poesia pode estar no amor. Mas não gosta de dizê-lo. É inefável.
A poesia é a mais pura e fina lâmina de ouro. Valiosa. Mas se rompe com menos de um tiro. A poesia é eterna, mas não é para sempre. Ela se dissipa em águas turvas. Dilui. Queima teu sentido, e se torna poeira de poesia.
Mas quem sou eu para falar de poesia, não é, Carlos? 

domingo, 17 de abril de 2011

Remoído

Saiu da aula inspirado - queria porque queria escrever alguma coisa. Chegou em casa, esqueceu de fechar a porta, sentou na mesa. Abriu o caderno. E ficou ali, parado, olhando fixamente a folha em branco. Esperando que, como por mágica, ele visse uma luz, sentisse um cheiro, ouvisse uma música ao longe ou lembrasse de algo que o motivasse. Sabia o como. Não tinha o sobre. E nada daquilo chegar. Esperou mais um pouco, insistiu. A campainha trazia o aviso da porta aberta. Oh, obrigada, mil desculpas. Alguns passos até a cozinha, caneca, leite. Puro? Não, com chocolate. Sentou de novo, dessa vez com a caneta já aberta, a postos, na mão. E nada. O ponteiro do relógio já estava cansado. Olhava com pena e súplica para o garoto sentado: por favor, não me faça esperar mais! Mas nada. Foi até o dicionário, abriu numa página qualquer, querendo encontrar o que precisava. Chegou ao verbo "selecionar". Não era muito expansível. Se deu uma segunda chance: "pedra". Pedra selecionada, selecionar pedras, hum, não. Ainda não. Uma metáfora distante se formava, mas tão lugar-comum! Abriu de novo o dicionário. Dessa vez uma esperança: "jangada". Selecionar jangadas, Jangadas selecionadas, Pedra da jangada, Jangada de pedra. Mas não, isso já existe, maldito Saramago! Desistiu do dicionário e foi novamente até a cozinha. Olhou pela janela e pensou em ligar para ela. Não, seu idiota, você nem ao menos tem o telefone. Mesmo se tivesse, a coragem morreria antes da dúvida. "Alô? É... eu queria... perguntar..." BIP. Desliga. Resolveu, então, escrever sobre qualquer coisa. Tentou sobre a caneca vazia, não deu certo. "Ali, parada, vazia. Usada" não era um bom começo. Adjetivos demais. Tentou sobre a janela da cozinha, mas esqueceu a frase que lhe veio à cabeça. Pensou em poesia: não precisa de rimas, quanto menos, melhor: vai parecer contemporâneo. É, isso mesmo: poesia. Mas ele achava que precisava de profundidade. Perdeu. Ligou o computador e abriu o facebook, queria esfriar a cabeça. Lembrou de adicionar aquela garota nova na classe, de curtir a banda que descobriu no dia anterior. Abriu o twitter, orkut, msn... Nem lembrava mais do que estava procurando. Abriu uma nova aba, entrou no dicionário online procurando a "palavra do dia". Nada. Mais uma daquelas palavras técnicas demais, restritas demais. Desligou o computador, sentou na mesa. Tirou da cabeça a prova do dia seguinte e se concentrou. Tentou, na verdade. Colocou os dedos em torno da caneta, a caneta sobre o papel, desenhou um A. Continuou: "A dir...". Direção era o que queria, em todas as suas formas intrínsecas. O vento entrava pela janela, levantou-se e fechou. Escurecia, acendeu as luzes. Colocou uma música pra tocar. Tocou uma música, pediu uma pizza. Sentou na mesa de novo. "A direção das grandes coisas/ou mesmo das grandes besteiras/Deixa...". A caneta corria pelo papel como que formiga ou cachorro atrás de carro. Quando se deu por satisfeito, toca o interfone: a pizza. Separou os vinte e dois reais mais a gorjeta e chamou o elevador. Esqueceu os sapatos, corre que o elevador chegou! Subiu com a pizza, comeu, guardou o resto pro café da manhã. Sentou de novo, dessa vez pra reler. Não estava gostando nada daquilo, tomou forma sem consciência, lhe deu medo. Procurou o celular, guardado na mochila. Chega a mãe, depois o pai. O trabalho foi cansativo, como sempre. Como todos os dias de trabalho estressante. Boa noite, filho. Boa noite, pai. Tem prova amanhã? Não. Tá bom então. Boa noite. Tirou o caderno de seu esconderijo e o abriu, furtivamente. Aquilo era seu ouro, o supra sumo de seu cérebro. Guardou em um lugar especial na prateleira e dormiu, esgotado. O dia entrou pela janela aberta.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Não

Nego que estou, nego que não estou. Cada hora é um, cada hora é diferente, cada hora tem lágrimas. Ou não. Às vezes tem consolo de brinde, mesmo inconsciente. Às vezes não. Geralmente talvez. Agora vejo um rosto, viro a esquina e oh!, lá está outro, mais dois passos e me lembro de mais um. Ou mais outro. Falta um pouco de paz, falta um pouco de raiva, falta um pouco de decisão, um pouco de cara de pau. Falta um pouco de tudo. O pouco que me resta tem penas e asas, e voa. Antes de sair, deixa um bilhete de angústia. O cavalinho não tem mais quem cuide dele, então deita no chão e espera. E passa fome. Não faz com que vire do avesso, faz com que mude. Não necessariamente. Acendeu a vela derradeira: a cera, quando pinga, deixa rastros inefáveis. E acaba, último. Pega o fósforo e o queima, até o final. Sente prazer com o esgotamento. Com o fim. Com o não. O mundo saindo, o pescoço virando de torcicolo fingido. A lembrança do falso adeus, do tchau inexistente. E do telefone, ou não. Das unhas e da mão, vaga e verde. Ainda não é hora de colher. O dia entra pela fresta na blusa, o vento entra pela fresta no olho e a música sai pelos ouvidos. O rasgo na porta deixa a dobradiça escapar. E nada de correr atrás. Apenas a suposição já aterroriza, internaliza e arterializa. Desce pra dentro. Porque não vivo no éter, bebo da poeira prolixa de estrelas. E enquanto procrastino o momento da breve exatidão, julgo o sim.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Qualquer

Oi eu sou você não eu sou ela e ele juntos terão terei uma vida duas feliz e você não sabe que sou pois bem sou isso aquilo isto todas essas coisas e confusões inclusive gramaticais e de expressão não ouço não vejo não falo mas cheiro e sinto gostos e tatos também tenho dois olhos a não ser que você tenha mais ou menos não tem problema uso os pés para andar os dedos para segurar essa caneta nada disso é tinta olho pra cima e vejo os outros alteridade e autoridade ali tem um bosque uma praça vamos passear consigo te contar mais sobre mim ele sou eu ela também e você está incluído nessa não imagine apenas absorva toda essa sopa sente-se na grama e olhe as formigas andando ao seu redor elas são leves nós gigantes ali tem buracos mais além montanhas dá pra brincar de escorrega você se lembra de algum escorregador vermelho aqueles de muito tempo de criança sabe eram ótimos agora só made in china e olhe la está escurecendo ainda não falei sobre meu mim eu sou o desconhecido para você não me interessa há quanto tempo já falei contigo antes tenho certeza geralmente tenho uns dejavus acredito em energias ali uma você outra e quando chega é impactante e percebo olhe a lua as estrelas não está chovendo e as nuvens não existem é só uma transparência ali está marte ou vênus não sei o sol o sol já foi embora há tempos vai voltar só amanhã gosto do sol e da lua opostos num segmento e o céu é o conjunto que engloba ambos os pontos as estrelas são a mediatriz colo sim as provas principalmente na biblioteca não sei mais é irritante cada hora um tic-tac relógio na parede o tempo é bonito faça homenagens a ele ele merece é relativo tem tudo mais um pouco e o resto o renegado é esquecido deixado de lado está no lixo não tenho relógio esqueci esqueço as coisas geralmente não faz diferença o que é um apontador ou uma idéia não cuido de plantas nem bichos eles morreriam perdi a aula ontem esqueci o livro em casa não gosto daquele professor mesmo não gosto desgosto gosto é discutível não depende qualquer um sabe que depende tudo depende não sou assim não quero ser assim nem nada e você?

À TONA

Nas manhãs de inverno,
De verão, primavera ou outono,
Nas tardes de sol ou chuva
E nas noites solitárias,
Acompanhadas ou dorminhocas,
Nas praças da Itália que nunca fui,
Embaixo das torres que quero ver,
E dentro dos prédios em que não moro,
No meio de livros que não li,
Nos ouvidos atentos que não ouviram,
Nas novas histórias sem serem abertas
E olhadas,
Nos narizes sentindo o odor fétido
Dos bueiros
E o floral de um perfume francês,
Nas mãos que seguraram crianças,
Que fizeram partos e cometeram crimes
Nos pés de quem não anda mais,
Nas solas empoeiradas de um sapato não usado,
Nas aranhas podres dentro das palmilhas
E na sapateira enferrujada,
Nas estantes cheias de uma biblioteca
E nas bibliotecas sem estantes,
Nas salas de estar com seus sofás recheados,
Nas agulhas e controles perdidos nas suas entranhas,
Na TV ligada no jogo de futebol
E na novela,
No carpete sujo e nas pantufas limpas,
Nas sapatilhas de uma bailarina frustrada,
No chão sujo onde ela caiu,
Na raiva contente e alegria instável,
Nos quadros em galerias e nos pintores malquistos,
Nas folhas e fichas perdidas no piso molhado,
Nas árvores espalhadas, esparsas no bosque
E no bosque vazio,
No piquenique bucólico
E na maçã com seis mordidas,
Na cesta básica do operário
E no champanhe de ano-novo,
Nas festas escuras e piscantes,
Nas cervejas à toa com os amigos,
Nos cigarros fumados pela metade,
Nos pulos do gato e da cerca,
Nas lâmpadas de emergência sem bateria
E nos ventiladores desligados,
Nos elevadores parados
E nas velhinhas atravessando a rua,
Na mulher desamparada
E no homem, falso confiante,
Nas gotas cálidas de desespero,
Nos rostos pálidos de frio e fome,
No frio,
E na fome,
Na sacola de compras que se rasga
E na ajuda do vizinho,
No despertados quebrado
E na bronca do dia seguinte,
Nas horas perdidas e minutos gastos,
Nos ursos polares comendo pinguins,
Nos lenços de papel jogados fora
E no papel-toalha com álcool,
Na caneta que falha
E no lápis que dobra,
No estojo mal cuidado,
Nas penas dos patos e passarinhos
Nos travesseiros,
Na barra da saia das moças
E na luta em liberdade,
Nos muros pichados e velhos
E na ponte caindo aos pedaços,
Nos carros vermelhos roubados,
Nos ladrões que alimentam filhos,
Na lâmpada de sódio queimada,
No termômetro sem mercúrio,
Na doença crônica e sem cura
Ou somente na doença,
Ou na cura,
No remédio milagroso segundo a propaganda,
Na música não tocada,
Na voz rouca incapaz de sair,
No captador desparafusado daquela guitarra velha
E nas cordas percutidas do piano de cauda,
No sono que vem chegando,
Nos imãs de geladeira,
Nos sucos de maçã
E laranja, sempre no fim,
No adesivo colado na janela do quarto,
Na cortina pendurada na janela da sala,
Nas grades colocadas nas janelas,
Nas portas,
Nas colas nas provas
E nas provas em si,
No fone de ouvido cortado ao meio
E no som interrompido,
No sinal rasgado
E no pote mal lavado,
Debaixo das cobertas que não me aquecem,
Dentro das meias que não aquecem,
Dos consolos que não aquecem,
No frenesi que não aquieta,
Nas piadas iguais há um mês,
Nos cadernos sem nada ou sem tudo,
Nos poemas perdidos nas estrelas
E nas estrelas sumidas,
No brilho apagado
E no olhar de relance,
Procuro-te.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Verde-esmeralda ou verde-musgo

Já fui, já voltei, mas ainda continua lá. Não se moveu, nem ao menos tentar, tentou. Estava presa dentro de palavras, dentro de ilusões. Estas, reais.
Mas não quero, não isso. Não queria. Sento na cadeira pela quarta vez no dia (mas não a certa), espio por cima do aro dos óculos, lembro. Vejo, lembro, revejo, a lembrança teima em não ir embora, tento, as palavras não saem, de novo, desvio, desespero.
O sinal vermelho-sangue se transfigura em verde. Tento seguir em frente, bato de encontro a um poste. Barreira, limite. Não dá, me lembro. Não tem condição: não mudou!
Continua!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Aquela coisa chata, que incomoda e dá saudades.

"Não, eu não quero sair. Já disse. Não, ele me persegue... Não adianta, não adianta, ele vai atrás... Medo? Não... Só quero que ele vá embora, ele me assusta... Me deixa na dúvida, a dúvida é cruel! Mas não, eu não quero ir com você! Se eu saio daqui, ele vai estar à espreita, em cada esquina... Ele não é o mesmo, não é, não é! Ele muda, de acordo com o que for mais conveniente, me mata aos pouquinhos... Eu não vou, já me decidi! Pelo menos nisso a dúvida também não me persegue... Já falei! De nada adiantam seus argumentos! Saia daqui! Você sim me amedronta. Eu não posso, não posso levantar bandeira branca, devo resistir. Porquê? Ora bolas, só assim é capaz que ele saia. Não, não tenho certeza. Dois anos? Não, é só impressão sua. Escuta aqui, já falei que eu fico assustada! É como se ele fizesse parte de mim, fosse pessoal e intransferível, único e exclusivo... Ele deve estar lá fora a essa hora, ouvindo tudo. Claro que sim! Não, não o vi, mas eu sinto que ele está aqui, é uma sensação estranha, como se minha respiração ficasse mais difícil. Tu não entende? Dá uma olhada ali. Não, mais pra esquerda. Isso, o caderno amarelo. Dá uma lida. Gostou? Ah, obrigada. Mas entendeu? Claro que tem motivo! Ele não é um assassino serial, não vai ficar satisfeito dando uma facada nas minhas costas assim de repente, mas vai me torturando até eu me entregar! Aí sim ele dá o golpe final. Como que eu sei? Não sei. Porque eu gosto dessa sensação. Me dá saudade dele às vezes, dessa sensação de que ele está por perto, de que ele me persegue. Já vai? Não, não vou contigo. Coloca o caderno de volta, por favor? Se ele espiar pela janela não vai notar nenhuma diferença. Coloca mais café na xícara? Se eu levantar vou ver meu tênis, e vou me lembrar dos cadarços. Isso. Só fecha a porta quando sair."

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Dia de Chuva - Parte 4 (final)

Marina rodava, rodava, num mundo que não era o seu. Lua dançava ao seu lado, ambas olhos vazios. Estrela ia mais ao longe, subia, subia, sabia onde ir e quem orientar. Lua sabia o que mudar. E Marina... Deveria voltar, já devia ter voltado, mas aquele sentimento de segurança e alívio seria abandonado. Isso ela não desejava. Sua irmã ficara, deveria voltar e mover o necessário para protegê-la. Ela não sabia. Se soubesse, a encontraria... Seria melhor... Mas não, tirar uma vida era um peso grande demais para sua consciência. Já era um privilégio grande demais ter se encontrado com Lua. Embora isso não fosse propriamente um privilégio, mas todavia...

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- Bom mesmo, assim ela aprende a se comportar. Pelo menos não vai nos dar trabalho. - Disse um terno verde-oliva.
- Temos ainda a irmã dela, companheiro.
- Mas essa está tão assustada que não se atreverá. - Outro à mesa também se colocou, calmamente.
O grupo ali reunido se preocupava com coisas muito maiores do que dois corpos caídos no chão. Precisava continuar. Tinha que.

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Cecília agonizava no chão. A respiração cada vez mais difícil. Gibrail ao lado, mas este já havia deixado de sentir há tempos. Porque embora não percebesse, o objetivo de sua espera por tantos anos estava ao seu lado, mas as forças já tinham se esvaído de sua mente. Não havia mais memórias. Só manchas do que um dia foi. E do que nunca voltará a ser, pois ali permaneceria até findar.

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O almirante se desesperava no convés. Não havia vento, não havia lua ou estrelas. Apenas breu. "Parece de propósito", pensou. O barco, cada vez mais agitado pelas ondas, seguia com certa dificuldade. Mas seguia para o nada, não sabia. Decerto iria a pique. Se não fosse o Mar acalmar, uma Estrela surgir ao longe e a Lua brilhar acima das cabeças dos tripulantes, agora tranquilos. A vida tinha que continuar.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Surpresa

Erê pensava fugas. Fugia em pensamento. Olhava pros lados, pra ver se "a barra estava limpa", fechava os olhos e fugia. Escapava, ia andando, virava A Esquina e se surpreendia com um mundo novo, o mundo que ela queria conhecer. Mas não conhecia, por isso inventava. Ela queria se sentir amada, queria ser chamada de "melhor amiga" por alguém que não fosse sua vizinha de cinco anos. Estava inconformada. Estava com um nó no peito havia tempo, mas só conseguia traduzir isso em gritos e motins. Até perceber.
Até que a falsa tristeza (falsa por ser fictícia) e o mau humor tomaram conta de Erê; qualquer palavra a lembrava de que lá fora têm mais palavras. Qualquer enfeite de natal a lembrava da neve no longe. Até o disco empoeirado na estante lhe lembrava do tanto de gente em tanto lugar que teria ouvido as mesmas músicas.
Era pra ela já ter esquecido. Ela queria um norte, só isso. Não era compreendida, a julgavam adolescente, louca e desequilibrada.
Quando aconteceu, Erê ficou mais forte. Será que conseguiria? Será? Talvez um pouco mais pra além d'A Esquina? Não sabe... Ela entendeu que não precisava pensar a fuga. Não era necessário fugir. Dava pra ser, ali e naquele momento. E em quaisquer lugares, em quaisquer ensejos. Era só ser. Ser o que queria, e teria um mundo inteiro à sua espera. Não adiantava esperar que ele se incutisse em seus olhos fechados. Se Erê suspendesse o queixo, empinasse o nariz, olhasse bem fundo à sua volta e simplesmente fosse, tudo estaria meio pronto e resolvido. Se ela não fosse, quem seria por ela? Não é? Se ela não se amasse, quem mais a amaria? Se sentiu capaz. Sim, ela conseguia, não tinha porque não. Não havia aquele ditado, "se Maomé não vai à montanha, a montanha vai até Maomé"? Se uma das metades não estava em ação, que ela tomasse as rédeas do que queria e se levasse em frente.
Não precisava de equipamentos sofisticados, não precisava de uma equipe treinada e competente, não precisava de nada nessa empreitada. Só dela mesma. E isso ela tinha de sobra. Depois d'A Esquina tinham outras esquinas, que tornavam aquela comum. Não, igual nunca seria, seria sempre A Esquina, o limite imaginário por tantos anos. Mas seria comum. Daqui a pouco ela teria um catálogo de esquinas em seus olhos, em seus ouvidos.
Talvez o mau humor dominasse Erê de vez em quando. Mas seria um mau humor intensivo, que logo acabava. Pois "quem chorou dia sim, dia não, chorava menos, mas foi chorando até o verão". Ela gostou daquela sensação. Que lhe mostrava que sim, existiam limites, mas sempre é possível encontrar uma chave para suas portas. Alguns limites não tem portas. Estes sim, não podem ser transpostos. Mas a maioria são limites quiméricos. Esses geralmente são impostos por ela mesma. Quem disse que Erê nunca conseguiria terminar de ler todos aqueles livros (que ela sempre começava, mas se entediava e parava)? Quem disse que ela nunca teria coragem de falar com aquele gatinho que morava na rua de trás? Tudo, tudo ela mesma.
Não precisa ser exageradamente e espalhafatosamente. Porque daí extrapola o limite do ridículo. Basta ser, sentir, ver, sem máscara, sem bloqueio, sem falsos credos.
Erê não acreditava que era tão simples.
Achou que tinha algo errado, sentou no sofá, olhou pros lados, fechou os olhos e pensou.
Andou, correu, dançou, ouviu. A música que soava em seus ouvidos, que movia em seu corpo. As esquinas, os faróis. Mas sem fugir. Porque ela já tinha chegado no mundo que tanto procurava.