quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Arroubo

Há tempos que ninguém entra na casa. As cadeiras de balanço foram deixadas para trás, os carrinhos de bebê foram deixados de lado, as janelas grandes e reconfortantes foram esquecidas. Janelas do teto ao chão, que ela polia com esmero todas as manhãs, que a abrigavam do vento e chuva, que mostravam por seu vidro de proporções dantescas um jardim. Um jardim como outro qualquer, mas todo jardim tem suas flores... As cortinas se tornaram puídas, repletas de ovos de maria-fedida. As cadeiras de palhinha da varanda foram abandonadas ao relento, e já não há mais palhinha: apenas um resto de refeição cupinesca. Na cozinha revestida de descascados azulejos portugueses, a louça tinha sido lavada na última estada, mas nem mesmo o mais brilhante cristal resiste à poeira. Um rádio, pousado ao lado de um belo vaso de petúnias (das petúnias em si, nem sinal), fora deixado ligado. As baterias acabaram, mas o botão retrô de on/off ainda estava voltado para o lado on. No quarto, a cama jazia como que recém feita, e com um espesso cobertor a mais: com a janela do quarto quebrada por algum garotinho malandro, era de se esperar que os lençóis de seda estivessem forradas de dejetos de aves, roedores, insetos... Em suma, descuido quase que total. O pequeno banheiro só vencia seu quarto adjacente por um fator: a colossal trilha de fezes aviárias que encobria o centro do espelho.

A volta àquela antiga morada trouxe choro, aquela sensação de desperdício e vergonha interna, uma pitada de arrependimento. Aonde estava a tão falada "jornada pelo auto-conhecimento"? Onde estava a sensação de completude, de "paz interior"? Já tinha procurado. Abrira cada compartimento, gaveta, armário, cofre e porta que pôde encontrar... E permanecia vazia. Incompleta. Também, não sabia ao certo o que deveria encontrar: se seria alguma lembrança da infância que, quase como por mágica, a transformaria em alguém menos ofegante e ansioso para os mistérios que vieram e ainda hão de vir, se seria alguém, se seria um cheiro, uma flor, não sabia. Tampouco sabia como procurar: se deveria ficar quieta no seu canto, cuidando do jardim para que as borboletas viessem até ele, se deveria armar um escândalo e aguardar com um olhar de soslaio e um "tchan-an!"aquilo (ou alguém) que a viria acalmar, não sabia.

Só lhe restava procurar, e disso ela já estava cansada.

Deitou-se um pouco no antigo sofá vermelho - "ah, que saudades desse sofá vermelho... Pena que já me ocupei tanto que não resta mais espaço para ele. Mas talvez, com uma reforma aqui, uma faxina ali... não, pare." -, um pouco menos destruído e sujo do que a cama. Ali deixou-se largar, e dormiu.

Sonhara com uma diminuta garotinha, correndo por entre os móveis impecavelmente alinhados como se fossem lava, rindo como a criança que era, aguardando o almoço. Porém o almoço não se fez por si - onde estava todo o suporte, as muletas naturais? Ali é que não estavam. Conteve uma lágrima e saiu pela porta da frente, sem antes levar consigo uma de suas bonecas, uma moeda que achara debaixo do tapete e um graveto qualquer do jardim.

Acordou com ambos os olhos abertos e as sobrancelhas tensas, com uma gota de suor caindo levemente sob seu queixo e com um sorriso cobrindo-lhe a face. Não encontrara o que queria, mas quem sabe na próxima? Sempre há uma porta da frente para sair, um dia essa porta há de dar em alguma estrada, um dia essa estrada há de dar em algum lugar...

Um comentário:

  1. é com fé que escrevo. Pq os dias, os fatos e a rotina precisam se abrir, quebrar a casca e sair em foz. Já não pode ser assim - e isso também é ser. Cito e estou circunscrita: nada de novo. =)

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