sábado, 23 de julho de 2011

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“Barcelona, 15 de agosto de 1938.

Querida Penélope,

Escrevo-lhe depois de tanto tempo para relatar minhas mais recentes peripécias nesta cidade de lixívia e carvão. Melhor dizendo, lixívia, carvão e pólvora. Minhas noites são regadas a desassossego, assim como a de todos os desafortunados que possuem Barcelona como morada, aguardando a cada passo um novo confronto. Só fazemos esperar, e que isso traga um melhor futuro.
Aqui, até as pombas que rondam as ramblas são incrédulas. O povo está confuso. Seu estado normal é o ébrio. Outro dia, um dos poucos com céu azul e sol, quando se podem ver crianças e velhos andando pelas praças e bondes, topei com uma lojinha qualquer de esquina. Sua dona, uma senhorinha de olhos caídos e vestes acinzentadas pelo medo, olhava para o longe, forçando a vista. Indaguei-a acerca de uma blusa xadrez. Não tinha idade para ser surda.
- Com licença, a senhora tem blusa xadrez no estoque?
- O quê? Cacharrel? – responde a tal.
- Blusa xadrez, com padrão xadrez, linhas cruzadas... Conhece?
- Como? Gola em V?
E em seguida mostrou-me uma infinidade de moletons e malhas com decote em V. Logo se notam os efeitos do caos que a acomete.
Também não ando lá muito veemente. Tenho saído pouco, meus almoços se reduzem a um café com leite (obtido, e digo, às custas dos vizinhos de caixa postal...) e a cesta de lixo nunca esteve tão abarrotada de papéis. Amassados, rasgados, por vezes inteiros... Talvez sintoma de arrependimento, e uma esperança tardia de que todos esses personagens desperdiçados retornem das cinzas.
Há algumas semanas dom Agustín, o relojoeiro, me ofereceu um passeio ao parque. Lembrando de seus antecedentes tendendo à homossexualidade, recusei. Creio que me arrependo, poderia ao menos ter respirado um pouco de ar puro, e me libertado por alguns instantes dessa atmosfera de tabaco e tristeza.
Procuro ler, sempre que possível, os jornais da manhã. Acontece que o dinheiro anda curto, e ninguém precisa ler as notícias da guerra: basta abrir a janela.
 Recebi uma caneta tinteiro de prata. Chegou pelo correio, sem remetente. Acreditei ter sido sua, mas a encomenda era nacional. Reluz ao mínimo polimento. Não a mereço, minhas palavras refletem apenas a negra poeira das ruas e os preteridos. Além disso, me falta a tinta. Enquanto esta não vem, contento-me com os tipos regulares da máquina.
            Da última vez que acreditei ter chegado a um resultado bom, senão ao menos satisfatório, descobri que a tal história já existia. Ou estou ficando desmemoriado, ou sou um lugar-comum. De qualquer forma, peço para lê-la, e que fique registrada a minha incapacidade para com as palavras.

‘Enquanto escrevo, um homenzinho me observa pela janela, do outro lado da rua. Seu rosto está encoberto pela sombra, e só o que se vê é a luz queimante da brasa de um cigarro. Certamente que usa luvas. Daqui, enxergo seus dedos se dirigindo calmamente à sua boca, e novamente pendendo ao chão. Esse ritual sereno se repete indefinidamente: não se cansa. Se prostrou estrategicamente embaixo do poste de iluminação, de forma que dele nada se vê, abaixo do chapéu. Algo entre detetive e zorro, um quase personagem fictício, etéreo, onírico. Joga a ponta no chão e a esmaga com o que lembra o sapato da minha avó: preto, pequeno demais e com uma ponteira branca ridícula.
Ele sabe que o observo, e creio que é isto que o motiva a permanecer ali. Agita uma nota de algum valor e me chama. Não vou. Volto meu olhar para a estante, a poltrona, a porta da cozinha. Esta última me convida, e parto para preparar um café, na esperança de que, nesse meio tempo, o tal já tenha desistido e deixado de ser teimoso.
A lua entrando pela janela de frente à pia se torna uma visão estonteante. Ao retornar, a intuição se confirma: a figura continua a postos. Tomado de uma raiva subido, abro a janela e grito algumas palavras nada finas. Não obtenho nada em troca, exceto os berros da vizinha debaixo.
Cogito chamar a polícia, mas já estou metido em dívidas demais. Resolvo deixar como está. Desta vez, eu sou quem desiste.
Já sabia o que ele queria obter desde o início. O sujeito não me era estranho: o homem do esbarrão no bonde, o do jornal no café, o dos papéis no banco. Atiro pela janela, em sua direção, estas últimas palavras. Caio na própria poltrona, vencido pelo cansaço. ’

É isso. Só não espalhe aos quatro ventos suas críticas (por assim dizer, protecionistas), e estaremos em paz.
            Arrumei um emprego como pianista num bordel, quase todas as noites. O vizinho da frente me julga o homem mais sortudo do mundo, embora não seja bem assim. As moças ali são tão carentes quanto os homens que as arrastam para os lençóis.
            Espero continuar aqui, talvez até o fim desses tempos. Não sei. Mercedes lhe manda lembranças, e espera poder te ver logo. Eu também espero.

Um abraço,
Miquel “

Miquel não toca piano, nunca viu a guerra nem, tampouco, Barcelona. Penélope? Somente um sonho.

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