quarta-feira, 13 de abril de 2011

À TONA

Nas manhãs de inverno,
De verão, primavera ou outono,
Nas tardes de sol ou chuva
E nas noites solitárias,
Acompanhadas ou dorminhocas,
Nas praças da Itália que nunca fui,
Embaixo das torres que quero ver,
E dentro dos prédios em que não moro,
No meio de livros que não li,
Nos ouvidos atentos que não ouviram,
Nas novas histórias sem serem abertas
E olhadas,
Nos narizes sentindo o odor fétido
Dos bueiros
E o floral de um perfume francês,
Nas mãos que seguraram crianças,
Que fizeram partos e cometeram crimes
Nos pés de quem não anda mais,
Nas solas empoeiradas de um sapato não usado,
Nas aranhas podres dentro das palmilhas
E na sapateira enferrujada,
Nas estantes cheias de uma biblioteca
E nas bibliotecas sem estantes,
Nas salas de estar com seus sofás recheados,
Nas agulhas e controles perdidos nas suas entranhas,
Na TV ligada no jogo de futebol
E na novela,
No carpete sujo e nas pantufas limpas,
Nas sapatilhas de uma bailarina frustrada,
No chão sujo onde ela caiu,
Na raiva contente e alegria instável,
Nos quadros em galerias e nos pintores malquistos,
Nas folhas e fichas perdidas no piso molhado,
Nas árvores espalhadas, esparsas no bosque
E no bosque vazio,
No piquenique bucólico
E na maçã com seis mordidas,
Na cesta básica do operário
E no champanhe de ano-novo,
Nas festas escuras e piscantes,
Nas cervejas à toa com os amigos,
Nos cigarros fumados pela metade,
Nos pulos do gato e da cerca,
Nas lâmpadas de emergência sem bateria
E nos ventiladores desligados,
Nos elevadores parados
E nas velhinhas atravessando a rua,
Na mulher desamparada
E no homem, falso confiante,
Nas gotas cálidas de desespero,
Nos rostos pálidos de frio e fome,
No frio,
E na fome,
Na sacola de compras que se rasga
E na ajuda do vizinho,
No despertados quebrado
E na bronca do dia seguinte,
Nas horas perdidas e minutos gastos,
Nos ursos polares comendo pinguins,
Nos lenços de papel jogados fora
E no papel-toalha com álcool,
Na caneta que falha
E no lápis que dobra,
No estojo mal cuidado,
Nas penas dos patos e passarinhos
Nos travesseiros,
Na barra da saia das moças
E na luta em liberdade,
Nos muros pichados e velhos
E na ponte caindo aos pedaços,
Nos carros vermelhos roubados,
Nos ladrões que alimentam filhos,
Na lâmpada de sódio queimada,
No termômetro sem mercúrio,
Na doença crônica e sem cura
Ou somente na doença,
Ou na cura,
No remédio milagroso segundo a propaganda,
Na música não tocada,
Na voz rouca incapaz de sair,
No captador desparafusado daquela guitarra velha
E nas cordas percutidas do piano de cauda,
No sono que vem chegando,
Nos imãs de geladeira,
Nos sucos de maçã
E laranja, sempre no fim,
No adesivo colado na janela do quarto,
Na cortina pendurada na janela da sala,
Nas grades colocadas nas janelas,
Nas portas,
Nas colas nas provas
E nas provas em si,
No fone de ouvido cortado ao meio
E no som interrompido,
No sinal rasgado
E no pote mal lavado,
Debaixo das cobertas que não me aquecem,
Dentro das meias que não aquecem,
Dos consolos que não aquecem,
No frenesi que não aquieta,
Nas piadas iguais há um mês,
Nos cadernos sem nada ou sem tudo,
Nos poemas perdidos nas estrelas
E nas estrelas sumidas,
No brilho apagado
E no olhar de relance,
Procuro-te.

Um comentário:

  1. Oi bonita, gostei muito. São todas as coisas cotidianas e transcendentes amarradas com um estilo especial,muito seu. Em determinadas horas ri de identidade,nem sei se pelo mesmo significado dos seus 'versos'. Percebo,feliz e com emoção, que o entremeio de nós duas é um ponto de interseção. No segundo seguinte é espanto o que sinto: você já não me pronucia num hiato banguelo,cresceu,tem força e voz. Me orgulho muito. ;) beijo

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